Depois de mantê-los incógnitos ou de me acostumar a usar os sites alheios, não vejo, enfim, porquê não publicá-los (e se não tinha feito isso até agora foi por pura preguiça).

Sempre que escrevia uma crítica ou crônica, invariavelmente, se não fosse publicado pelos pequenos jornais de minha cidade, ficava guardado no meu HD. São vários textos que tenho e que, por falta de oportunidade ou por não me dispôr a lidar com eles num blog, ficaram guardados até agora. Tomo então a inciativa de dar-lhes luz e publicidade através da internet.

Tenho resenhas de livros também, mas não vejo ainda oportunidade de incluí-las aqui. Continuam espalhadas por sites afora.

Quanto aos contos, são prativamente a razão disso tudo. Depois de algum tempo escrevendo para o Leia Livro, site mantido pela Secretária de Estado da Cultura, de São Paulo, creio já ter amadurecido bastante para tentar manter, por minha própria iniciativa, um blog literário que suporte meus textos curtos.

Textos longos mantenho no meu outro blog, criado exclusivamente para divulgar os livros de minha saga de fantasia A Fome de Íbus, cujo primeiro livro, o Livro do Dentes-de-Sabre, pode ser adquirido pela internet.

Tomo a liberdade de, às vezes, incluir textos que pertençam a terceiros (o que contraria frontalmente a proposta original deste blog. Fazer o quê? Farei isso quando achá-los tão bons e oportunos, que se torne premente sua divulgação ante meus próprios dogmas). Cometerei esta indiscrição alegremente, descaradamente e sem dó, disseminando suas idéias e inteligência. Vou logo pedindo licença e perdão aos autores.

Assim, sem encontrar mais oposição (minha própria), que justique o contrário, nasce o Charranspa (que não significa nada além de ter sido um dos meus apelidos de infância).

Tomo este meu velho pseudônimo como tema e batizo este espaço.

Está feito.

Albarus Andreos

Junho de 2007.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O Dilema do Menino

Albarus Andreos
em setembro de 2007.

O menino chegou correndo feito bicho arisco, tropeçou e lá se foi o sorvete. “Porcaria!”, disse para si. Com a colherinha foi juntando a macinha cor-de-rosa. Olhou pros lados, ninguém via. Tacou de novo no copinho o máximo que conseguiu. Olhou de lado, ressabiado. Mamãe conversava com Isaltina na cozinha. “Tudo tranqüilo!” O carpete não deixara vir todo o sorvete para a colher. O menino já estava com o coração pulsando alto na garganta. “Mamãe vai ficar brava!”.

— Raspa mais...— o menino voltou-se para ver quem lhe dava a sugestão esbaforida e viu Mr. Sbrugs, verdadeiramente preocupado com sua sorte. Era seu sapinho de tecido recheado de feijões. Há dias o perdera de vista e agora encontrava-o sob o sofá, como ele próprio havia deixado aliás, enfiado entre as molas e a madeira, onde grampos prendiam o curvim do estofado.

— Não vai adiantar. Fez caca! — disse Darth Vader, que chiava atrás de outra espiral de mola.

Os pelinhos sintéticos do carpete marrom apareciam misturados ao restolho do melado, na colher. Não dava para reaver mais! Não dava para tirar direito. O boca desceu então rapidamente para a mancha grudenta.

— Boa idéia! — disse o Power Ranger Azul que, sem uma perninha, estava oculto em outro esconderijo do móvel (só Mr. Sbrugs lhe pertencia de verdade. Os outros eram herdados de seu irmão mais velho, que já não brincava com eles. Atinha-se agora somente ao Play 3, que ganhara de Natal).

Não era muito bom chupar o sorvete direto do carpete, mas a língua percorria toda a nódoa opaca que já não era mais fria. Além do gosto artificial de morango, tinha o gosto do carpete. “Então este é o gosto do carpete? Então as coisas tem gosto?” Não era uma gosto bom. “Deixa para lá...”. Tentou chupar mais forte e fez aquele barulho do ar entrando todo de uma vez, por uma frestinha. “Foi um barulho alto! Como pode ser tão alto?” A reflexão do menino não durou muito.

— Agora você está ferrado, garoto! — falou de novo o agourento Anakin Skywalker, com voz metálica, sob sua máscara negra, refletindo todo o pessimismo do “lado escuro da Força”.

Ouviu os passos da mãe que já estava achando o silêncio um prenúncio de arte. “Mamãe era esperta!” O coraçãozinho acelerado era de pânico e levou a que perdesse um pouco da noção de equilíbrio. A cabeçona do menino ainda era demasiado grande para o corpinho nanico. Desproporção que não se devia a defeito, mas típica da tenra idade.

Ajoelhado como estava, o que recuperara do sorvete estava numa mãozinha, dentro do cone de massa insípido e já mordiscado; a colherzinha na outra. A mãe vinha! Numa manobra descuidada tentou abaixar o tronco rapidamente para chupar mais do sorvete e livrar-se o melhor possível das provas do incidente. A boca foi de encontro ao que ainda havia de doce no chão. “Rápido demais!” O choque dos dentes foi o primeiro ruído, depois que o rosto assumira uma expressão de que algo havia de errado. Esquecera das mãos para apoiar? Tinha esquecido que assim não havia equilíbrio, menino?

Voou um caquinho de dente longe e o sangue jorrou da gengiva machucada. O choro veio depois do baque, exatamente quando mamãe já contornava a curva entre a parede e o piano, adentrando a sala: “Ai, meu Deus! Coitadinho...”

E foi assim que o menino, de pequeno, já descobriu que havia maneiras de se mudar o curso da história, mesmo aquelas que revelavam um futuro sombrio e sem esperanças como o que prenuncia uma – suposta – bronca materna. Para isso valera-se de uma artimanha que tinha sua origem diretamente relacionada ao apreço que ela tinha por seu caçulinha. Um apreço que não permitira que ela visse direito o todo da situação e, sem se ater a pormenores, logo supusesse que nada havia para supor além do que via por si e só.

Por alguma razão o menino sempre achou que perpetrara um engodo. Não o havia planejado, mas lhe livrara a cara. A confusão, de exclusiva responsabilidade da mãe, não lhe valia de pretexto pelo descuido de ter feito o que não devia, pois: “Afinal a mamãe não vivia dizendo que não devia correr dentro de casa?” Talvez não fosse realmente sofrer uma represália, passou a pensar, mas havia levado vantagem na história, e isso tinha servido de alívio.

Ganhou um sorvete novo o menino, além dos carinhos de sua mamãe e o sinal permanente que levou para a vida adulta: sorriso simpático, de menino arteiro, devido ao dente quebradinho.

Rendera-se ao “lado negro da Força”, sem dúvida!

domingo, 26 de agosto de 2007

Endurecimento

Albarus Andreos
em 16/ Ago/ 2007.


Depois do almoço sempre ia com Durango, meu cachorro, à beira do rio. Eram tardes quentes aquelas do sítio da vovó. Sempre de torrar os miolos, não sei porquê. Naquela época, o calor parecia menos africano e mais californiano, pois o que importava era a juventude deliberada e o tempo livre para crescer como se deve. Eram tempos de meninice, de descobertas como esta que narro. Contudo, para o pesar de todos nós, discorro exatamente da tarde em que tudo isso acabou.

Mamãe preparava um pão com manteiga e polvilhava Nescau dentro dele. Aí embrulhava numa toalhinha xadrez e me dispensava com tapinhas risonhos. Às vezes levava um chá gelado com laranja, quando dava tempo. Então eu apanhava Durango com um assobio e corríamos para o brejo, numa carreira que fazia a barriga cheia de refrigerante sacolejar e o riso refrescar depois de um arroto. “Não corre que você acabou de almoçar”, gritava dona Berta, a mulher que ajudava vovó.

Mas correndo ou não eu sempre voava. Grandes tardes aquelas que tinha. Sim, por isso as tardes quentes. Óbvio! Férias de dezembro. E então, ia sem reserva. Lata e varinha numa mão, lanche de manteiga com Nescau na outra. Parava no brejo para cavoucar a terra e encher a latinha de minhocões graúdos.

Mal atravessava o brejo, passando por poças e troncos, dava na ponte do Imirim, e depois continuava por mais uma légua e pouco. Sempre havia coisas novas para ver: a casa do João de Barro se tinha concluído; um novo cupinzeiro ao lado da estradinha, enorme, como um urso sentado de costas para a estradinha; ali adiante as mangas já estavam “de vez”; taturanas aterrorizantes nas goiabeiras; os ovos do chupim já haviam eclodido no ninho alheio (e o tico-tico a cuidar deles sem se dar conta do tamanhão dos filhotes); tempo de içás, ou não; a terra do Seu Seiji Nakata arada e vermelha no alto da serra, e vermelha me pareia sua pele queimada de sol, dentro de mangas brancas e compridas sob chapelão despencado sobre o sorriso cordial; Seburano, o recém-comprado touro nelore de vovó, mais uma vez beirando a cerca de arame farpado de cinco fieiras, que teimava em sempre arrebentar (e o peão, Zé Fabrício, toca a impedir, montado em Maravilha, sua égua baia)... Sempre via e revia tudo de novo, deliciado. Lá para mais de uma hora, era o que eu levava para cumprir a curta distância. Ia brincando...

Naquele dia, à beira do rio, me sentei e olhei adiante o dourado verão que se remexia em ondinhas na superfície vítrea do rio. Enfiei a pobre minhoca no anzol (tinha a mania de rezar uma Ave Maria, pelas “alma delas”) e mal havia volteado a vara, vi que o cão se agitava perto da margem. “Sai daí bicho besta. Como cê quer que as tilápias venham com esta algazarra!”. Mas o bicho não me deu bola daquela vez. Foi para a beirada e começou a latição. “É paca? É paca, Durango?” perguntei, já prevendo que o cão achara bichos para infernizar. Uma vez achara siriemas no descampado, antes da mata ciliar, e tome correr e perseguir as coitadas até encher os pêlos marrom-vermelhos de carrapichos. Desta vez não. Uma possibilidade aterradora me veio a cabeça. “Sai Durango! Se for jibóia te pega. Sai já!”

Nem paca, nem siriema, nem cobra. Havia algo branquelo e rijo flutuando na beirada das taboas. Os aguapés tão miúdos e unidos tal qual nata verde-oliva. Os juncos todos entrelaçados, misturados com galhos úmidos e apodrecidos de árvore. O mato meio encobrindo a coisa volumosa que começava a se enxamear de moscas. Percebi, de uma lufada só, que cheirava à carniça. Só precisou de uma para aquele cheiro impregnar.

“Vem Durango! Vem.” Do alto de meus treze anos, era difícil dizer, mas eu sabia o que era corpo de gente morta. “Vem Durango, porra!”

Mas o bicho curioso continuava fuçando no rotundo cadáver que vestia camisa branca e só. Não tinha como imaginar direito o que via, mas havia uma bunda meio submersa na água cor de chá (sabe-se lá como perdera as calças). A cara voltada para baixo e os cabelos em névoa, circulando uma ligeira calva, flutuando, cheio de enroscos.

E a frieza terminou ali. Minhas entranhas ficaram líquidas quando dei por mim. O coração reverberando dentro da traquéia. Um morto! Como podia haver uma morto ali? Um morto...
Na minha cabeça, muito jovem ainda, via que aquilo era um morto. Não uma pessoa que havia morrido. Um morto. Algo totalmente alheio a minha realidade de mundo. Algo que não se deve ver, nunca. O meu universo era muito pequeno, confesso, e não havia espaço para coisas inusitadas. Mortos não eram ex-pessoas, eram coisas que pertenciam ao “Algo Mais” que nos cerca. Ao além.

Sentei, ou melhor, tive que sentar para não cair das pernas. Algo me sufocava e me atirava ao chão. Estava abatido e ao mesmo tempo incapaz de me mover e correr dali com a maior força que minhas pernas pudessem ter. Empurrar o chão para longe e me fazer deixar aquele lugar. Quando dei por mim era exatamente isso o que fazia. Corria feito louco. Tinha de contar... Lágrimas escorreram de meus olhos. Parecia que toda distância do mundo não seria o suficiente para me separar daqueles seis ou sete metros de terra inclinada de margem que se materializaram naquele momento. Aquela pequena distância que terminava na água do morto, no rio do morto. Ali era onde ele era o dono e eu fora até sua casa incomodá-lo, sem pedir permissão.

Senti muito medo. Não sei ao certo de quê. Não sei porquê. Vira algo que não deveria ser visto, como se a própria morte tivesse sido presenciada. De certa forma era o que imaginava. Não queria ter nada com aquilo. Não queria ter visto nada. Não queria ter parte com nada... o cheiro dele havia me penetrado o nariz. Como se tivesse comido pelo ar a carne inchada que se cobria de insetos.

Cheguei em casa de vovó muito antes do planejado. Me meti no quarto e me encolhi ente a cabeceira da cama e o guarda-roupa. Cheguei tão cedo que ninguém reparou em mim enquanto entrava. Só lá pelas seis, fim de tarde, quando eu costumava chegar foi que mamãe me achou. Socado no estreito vão onde costumava me meter desde os oito anos quando fazia das minhas. E desandei a chorar convulsivamente. Por mais que ela perguntasse o que tinha acontecido, não consegui responder. Estava impressionado demais. Não queria.

Ela me pôs no colo e me ninou como neném tentando me acalmar e saber o que tinha acontecido. Ouvi o latido de Durango do lado de fora da casa. “Durango! Durango, vem cá!” tinha esquecido o cachorro cutucando o corpo com o focinho. Ele deveria ter ficado lá, tocando na coisa estufada como porco duro, mordiscando o pano da camisa... A idéia me embrulhou o estômago e eu vomitei. Minha mãe se preocupou.

Não deu cinco minutos e ouvimos o ruído de um carro que se aproximava. Era um carro da polícia florestal. Depois apareceu outro, do resgate, e minha avó falou com eles por algum tempo. Depois mamãe foi ter com eles também, e vi quando Januário, o marido de Berta, levou os bombeiros para os lados do brejo. De longe vi uma viatura passando pela ponte do Imirim.
De noite ouvi as conversas na sala. Tinham achado o corpo de um pescador na curva do rio. Viera dois quilômetros rio abaixo se enroscar no sítio de vovó. As pessoas pareciam calmas embora falassem do assunto com reserva. Vi que mamãe olhava para mim e cochichava com vovó e Berta. Pareciam ter adivinhado que eu achara o corpo e entenderam minha reação.
Até nos recolhermos para dormir, minha mãe ficou alisando meus cabelos, sem comentar o episódio. Meus olhos doíam de inchados. Não saía uma palavra de mim. Um médico veio, a pedido de vovó. Deu-me calmantes. Depois Berta, com chá de cidreira e bolachas, já que eu não jantara.

Nunca mais pesquei. Jamais retornei à beirada de um rio. Foi a última vez que passamos as férias no sítio. Pouco depois vovó sofreu um derrame que a entrevou por seis meses e então se foi. Não falei nunca a respeito do ocorrido, com ninguém. Até hoje me pergunto por quê. Para mim, guardo como um momento íntimo, que envolveu um acontecimento macabro demais para um menino que não sabia que no mundo, as pessoas se transformavam em balões de gás arrocheados e cheios de fedor de carniça, a flutuar num rio. O ruído daquela nuvem de moscas varejeiras jamais me saiu da cabeça. Me esqueci até das imagens, mas outras se formaram no lugar, sem que eu quisesse. A cena se repetia por ângulos impossíveis. Via a mim mesmo olhando o cadáver. Via-me chegando perto e cutucando a forma inflada com uma varinha fina... Examinando a rigidez da pele branca desenhada de veias azuis. As moscas me sentando nos braços e me tocando os olhos e a boca. Durango lambendo a pele pegajosa que desgrudava da carne.

Ainda guardo com estranheza minha insondável reação, quando é natural às crianças a curiosidade. Nunca vi o rosto do cadáver, embora ele continue a me assombrar. Um rosto indecifrável, mas um rosto que criei naquele dia em meus pensamentos e, por algum motivo insondável, permaneceu o mesmo, sempre. Como se realmente tivesse sido aquela face o que estivera emborcado no líquido barrento.

Imagino que deveria ter revirado a coisa, visto sua cara, tirá-la do contato com a água que lhe sufocava. Mas aquela bisbilhotice juvenil jamais aconteceu. O toque com aquele corpo não seria suportável. Seria o contato com a morte. Não houve curiosidade como havia durante os filmes ou as promessas de coragem que se tem quando se está dentre outros meninos de mesma idade. Nada. Não fora a hora nem o dia. Nunca foi absolutamente assimilado, embora uma semana depois já estivesse pronto para o resto de minha vida. Na melodia da minha história, uma corda fora tencionada além do ponto provocando um tom fora do acorde. Penso a respeito e imagino, um dia, poder entender o que aconteceu naquela tarde de dezembro, durante minhas férias no sítio de minha avó, quando pela primeira vez tomei contato com a morte.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A Criatura

Albarus Andreos
24/02/2007


O sol já vai nascer. Restam-me poucos minutos antes que minha criatura venha me buscar. Fico aqui no seu aguardo, já sabendo o que me espera. Nada pode descrever minha aflição. Meu desespero é pelos sofrimentos a que serei submetido. A razão será tirada de dentro de meu crânio a fórceps.

Nem posso contar as madrugadas em que acorri para atender suas súplicas... Não! Não posso mais uma vez tomar partido dela. Não vou esquecer o motivo de estar escrevendo-lhe estas linhas, meu infeliz leitor. Não de novo. Não posso deixar-me convencer que é inútil minha luta, meu sofrimento. O mundo tem de saber o que fiz. É algo a que dei vida, e que está a pouca distância daqui, dentro desta casa, sob este teto de onde lhe escrevo, meu amigo. Perdoe-me. Se algum dia ler esta carta, é porque assim o destino permitiu, apiedando-se de minha miséria.

Estes minutos, antes de sua chegada são os mais intensos. Só queria poder dormir um pouco mais, só isso. Mas sei que logo escutarei seus passos leves vindo pelo corredor ainda escuro e seu vulto assomará na porta de meus aposentos. Silenciosa, sem estardalhaço como seria de esperar. Estarei de olhos fechados mas verei tudo. Queria poder me enganar que não vai acontecer de novo, mas no fundo sei que assim será, e isso só faz aumentar a angústia. Só queria poder dormir mais um pouco. Deixar-me abandonar nos braços de Morfeu e rezar para que os pesadelos não me alcançassem.

Às vezes fico aterrorizado, pois pressinto nitidamente que ela sabe o que penso. Ela lê meus pensamentos e usa isso para me massacrar. Minha cabeça parece querer estourar com uma dor que nasce na nuca e penetra obliquamente nos miolos até as têmporas. Há um aumento de pressão no meu peito. Minha agonia faz com que doa como em carne viva. Meu coração fibrila em descompasso, só aumentado a sensação de carne rasgando. Há aquele inchaço que se forma no pescoço devido à raiva contida a muito custo, querendo escapar por entre dedos frágeis que já não se lembram porquê conter o jorro da bile. Raiva que não pode ser libertada, porque eu sou o dono da culpa. Eu a criei.

Ela não deve perceber esta raiva. Não deve! Mas sei que percebe. Tenho que bloqueá-la, mas é difícil. Faz as pontadas no meu peito aumentarem. A criatura sabe e minha aflição redobra. Meu tormento se multiplicará por isso. Tenho que resistir pois ela sabe exatamente o que fazer para me machucar. Ela me conhece. A criação conhece tão bem ou melhor seu criador, imagem que é dele próprio, mas com uma ligação muito mais profunda, porque ao criador ainda houve um tempo anterior, quando ela não existia, em que era livre da maldição. Mas a coisa, ao contrário deste, só existe pela mão do criador, já que feita por ele. À criatura, o criador veio desde o início e sempre fez parte de seu universo. Adapta-se a ele desde seu surgimento, opondo-se cruelmente ao inepto que pateticamente se esforça por ser capaz de dominá-la.

Ela chega silenciosamente. A criatura sabe que eu a percebo ali parada e depois se movendo de novo. Sabe que a reconheço. Como poderia ser diferente. Eu a fiz! Cria minha, meu algoz e torturador, nesses dias em que as manhãs chegam ainda escuras com o prenúncio de sua vinda. Não seria desmesurado dizer que a mão do artífice prepara contra ele a maior das punições quando sua obra toma vida, como uma Galatéia às avessas a um Pigmalião desenganado.

Ouço a sombra chegando. Não deveria poder, mas sei que ela se aproxima. Oh, Deus! Finjo dormir como sempre. Meus nervos em frangalhos. Só queria dormir! Mas minha criatura chega, parando ao meu lado. Atraída por mim como sempre. Minha presença silenciosa é um chamariz para sua inocência primitiva. Agonizo de terror, mas então, mais uma vez como em tantas outras nestes três últimos anos em que a pus no mundo, sinto seu toque leve e frio no meu rosto. Ela fala com um sopro em meu ouvido. Um chamado que ela aprendeu com perfeição na sua curta existência. Burilada para incutir todo o pavor que sua condição pode conceber. Sem opção, abro meus olhos que imediatamente fitam os seus, pequenos, brilhantes e cinzentos, sobre sua estatura nanica. Como sempre, segurando uma fraldinha de pano contra o peito, ela diz: “Já ta claro, papai. Vamos assistir Discovery Kids!” E me puxa para a sala.

Deus... só queria poder dormir um pouco mais. É sábado e mal passa das sete da manhã.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

O Batfone

Albarus Andreos
Abril de 2007.

Meu filho veio até mim com um gibi de minha coleção que eu tantas vezes proibi que ele sequer chegasse perto.

— Pai, me explica isso aqui...

Tratava-se de um quadrinho em que o batfone tocava em primeiro plano, tendo como fundo a chefatura de polícia de Ghotan City. Não havia personagens ou balões. Só isso mesmo.

Essa descrição, que não podia ser mais elucidativa, contudo, não agradou ao menino.

— Não pai. Por que tem isso aqui?

— Isso o quê?

— Trim, trim... Por que trim, trim?

Sim, expliquei o porquê. Mas o cerne daquela questão me deixou atarantado! Estamos numa época em que o telefone não faz mais trim, trim em lugar nenhum, de tal forma que um menino de oito anos não tem idéia que trim, trim é o som que ele fazia antigamente. Aqueles velhos telefones de baquelite pretos, com fio em espiral ligando o gancho (que não era móvel) à base.

Hoje, os telefone fazem mmmm, mmmm; Ou bzmmm, bzmmm; isso para ficar nos telefones fixos, pois aos celulares guardo especial espanto! Um sobrinho tem um que quando toca (toca? Sim, hoje telefone realmente toca música... mas nem sempre.) ele fala, num tom crescente cada vez mais irritado: “Ô maluco! Atende aí! Não vai atender não? Atende aí...”. E tem um amigo meu, já com quarenta e poucos, que acha que ainda é adolescente. No dele, uma voz feminina e sensual faz: “Hmm, meu gostoso! Gostoooooso! Atende vai... Deixa essa mulher horrível aí e me pega... Vai... Como só você sabe fazer...Tô com saudades fofucho...”. Ele gosta de atender ao telefone especialmente quando está acompanhado da esposa. Já o de um amigo de minha filha (não posso dizer que estão namorando, porque não sei se o que fazem pode ser chamado de namoro...), toca um sonoro “som flatulento” de muitos e muitos segundos. Entenda: o “maluco” vem à minha casa, “dá uns pega” na “pirainha” e na hora da lasanha o aparelho dele peida! Juro que se um dia sentir cheiro ponho ele pra fora!

Telefone não fala só quando deveria “tocar”, ele fala também quando você disca (disca? Há quanto tempo telefone não tem mais disco?) um número e a “voz padrão” diz: “Esse número não existe...” mesmo que seja o número de sua própria casa. Telefone fala quando você quer reclamar de um produto ou sobre a péssima imagem da novíssima TV via-satélite que nunca pega: “disque 1 para reclamar, disque 2 para berrar, disque 3 para xingar, disque 4 para chorar...” e por aí vai.

Telefones tocam, sendo justo com a verdade, mas tocam Britney Spears, NXZero, Nati Ruts... Minha filha colocou Destroyer Rock City, da minha coleção de vinil no meu celular (não me pergunte como). Achou que com isso iria deixá-la acampar com seu “gasoso” namoradinho em Parati. Fiz com que tirasse, não sem algum prejuízo, já que só soube da alteração quando recebi uma ligação no meio de uma reunião com a diretoria da empresa, onde eu esqueci de desligar o celular (por que não me deu um tiro logo de uma vez?).

No fundo sinto-me velho, reclamão e inadequado... Quem poderia imaginar que, na década de setenta, o simples tocar de um telefone em casa pudesse provocar risadas, divertimento ou alegria (alegria... bem, isso provocava, já que quem tinha dinheiro e paciência para esperar meses e meses para que seu telefone fosse instalado pela TELESP, ficava muito feliz ao ouvi-lo tocar!).

A TELESP nem existe mais... Foi como a Light (e os bondes da Light para meu pai) e isso só nos mostra que o mundo gira mais rápido atualmente. Dá zilhões de voltas no HD da história que tem espaço para infinitos gigabytes. No meu tempo, o mundo ainda era 286, a gente gravada a FM em fitas K-7 e assistia Speed Racer de tardezinha.

Para encurtar a conversa, depois de saber que meu filho via diariamente um desenho animado em que o personagem principal era a “Morte”, alcunhada pelo singelo apelido de “Puro-Osso”, e que tinha, por alguma “maldição”, de cuidar de duas crianças chamadas Billy e Mandy, e onde frases como: “vou bater um barro” eram freqüentes, fui vencido. Decidi deixá-lo pegar minhas coleções de Conan, Batman, Homem Aranha e Incrível Hulk, dentre outras (deixei, contudo, Heróis da TV e Capitão América escondidas, para futuras barganhas...).

Nunca pensei que um dia diria isso, mas tenho saudades do tempo em que telefone não tocava.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Brügmann, o Fantasma

Albarus Andreos
Março de 2007.

Brügmann era um fantasma. Vivia no porão, ou melhor dizendo, nos porões. Sabia que ele era um fantasma porque já havíamos nos falado muitas vezes antes. Um fantasma que não podia pôr sua cabeça acima da terra. Mais precisamente, acima dos limites específicos de uma cova. Melhor dizendo: terra à cima.

A primeira vez que o vi foi durante a guerra. Papai havia partido com a tropa para os lados do Vale do Paraíba, onde os cariocas avançavam. Em todo o leste do Vale eles voavam com seus aviões e despejavam bombas. Algo indizível! Fui ao mercado como mamãe havia pedido e, não podia ser diferente, percebi-me num tumulto de gente embasbacada que via apenas metade da construção. Soldados vestidos com fardas cor de terra moviam-se com seus fuzis nas mãos. No meio da confusão, cavalos agitados puxavam o carro dos bombeiros, que tentava apagar o fogo vivo. Não havia mais o açougue de Seu Fernão Maia, onde a minha listinha dizia para apanhar dois quilos de carne-moída. Seria dia de porpetas.

Numa parede, via inscrição feita com tinta vermelha: PÓ. Eu mesmo a fizera, sorrateiro como um gato, durante a noite anterior, apenas fechando o C que vinha após o P e pondo o acento, em seguida. Adorava traquinagens. Pregar peças e inventar histórias era mesmo comigo. Soube que aquelas inscrições PC pipocavam nas cidades paulistas onde os constitucionalistas eram saudados. Eu apenas não sabia o que significavam. Vinha então, ao anoitecer, com a latinha e transformava aquilo em algo que fazia as pessoas rirem. Eu mentia que não era o autor daquilo. Minha mãe ficava horrorizada e até me bateu uma vez; não que ela sentisse qualquer simpatia à causa, que lhe tirara o marido e o pusera no campo de batalha, há quarenta dias. Eu nunca morara em outro lugar mas a família, por parte de minha mãezinha, vinha do Rio, e eles achavam que São Paulo queria se emancipar da União, contrapondo-se como estava, à Vargas. Meu pai, já era constitucionalista até as raízes dos cabelos.

Ouviam-se os zumbidos dos aeroplanos de origem francesa Nieuport durante toda à noite, e os ruídos do bombardeio que vinham do centro não nos deixavam dormir. Eu chorava com saudades de papai, abafando o lamento com o travesseiro para ninguém ouvir. Foi assim que me levantei e, ato contínuo, fui até o porão ver, não sei o quê. Faz tempo. Lembro do lacrimejar constante... Acho que chorava ainda, mas não percebia. Minhas pernas não paravam de se mover e meus pés pisavam o chão que eu não tinha intenção de percorrer. Nos fundos da residência ficava o porão. Passei as teias de aranha e abri a portinhola em meio ao estrepito que não tinha certeza soarem apenas em meu sonho. Lá havia brilho de velas, como abelhas meladas reluzindo à vaga-lumes. Sinistro, assustador, mas eu não parava. Não parei. Fui entrando então no fundo daquela cova, atrás do banheiro da cozinha.

— Demoraste! — disse Herr Brügmann.

— Quem... Quem és? — perguntei, choramingando. Estava assustado como nunca antes em toda a vida.

— Sou um fantasma. O responsável por fazer-te adulto, não vês?

— O que fazes no nosso porão? Mamãe vai...

— Não estou em vosso porão. Estou sob a terra, lugar que a ninguém pertence. Podes construir e destruir sobre o mundo, mas o submundo tem outros donos que não te competem saber — isso soou mais sinistro naquele momento do que podem imaginar. — Só estou aqui porque, condenado que sou, devo permanecer enterrado! Bem... não exatamente enterrado... já que a cláusula não fora bem escrita, na verdade. — O espectro parecia tergiversar, mas então ficou novamente resoluto e ereto. — Da terra para baixo estou e pronto! O contrato dizia “...sob a terra...”. Aproveitei-me disso. Não sou qualquer um. Oh não! A Letra da Lei não me guarda qualquer segredo. Devo dizer que, antes de servir ao Kaiser, formei-me com louvor, bacharel, em Kiev.

Era um fantasma! Eu estava falando com um fantasma sob o chão de casa, defronte ao amontoado de caixas e guardados empoeirados de anos e anos. Continuou, ajustando o óculo de prata sobre a vista esquerda.

— O acordo versava que, a partir de minha morte, sob a terra deveria ficar. Vontade de Deus... Enfim, aqui estou, como bem vês. O chão ali em cima e eu aqui em baixo. Nada poderás reclamar à Morte sobre eu ter desobedecido “o contratado”. — A aparição cofiou os finos e longos bigodes assentados à goma e ante o inusitado silêncio respondi, achando que deveria:

— Oh! Não senhor! Não me atrevo a...

— Muito bem então, rapazinho. É hora de saberes que teu pai está morto.

— O que? Não! Não está!

— Ah! Vejo que vai ser mais difícil que imaginava.

— Vou chamar mamãe.

— Não faça isso, Ela vai dar-te uma sova por estares mentindo de novo!

— Eu... Não minto!

— Oras! Poupe-me o trabalho de fazer-te convencer do óbvio. Não tenho tempo. Tenho que visitar outro domicílio ainda nessa noite. A causa dos paulistas vai de mau a pior.

— Espera! Quem dissestes que era?

— Sou Ludvic Von Brügmann, mein jongen. Vigésimo de cavalaria e correio pessoal do Kaiser — a aparição bateu com os calcanhares produzindo um estalido e inclinou-se empertigada, para frente, num ato reverente, apontando-me a ponta ameaçadora que se projetava do topo de seu capacete. Um par de medalhinhas na altura do peito oscilaram sobre o bolso da túnica militar debruada de galões. Reluzente tira de couro vinha cruzada do ombro, coberto de dragona, para a cintura, onde esplêndido sabre pendia em bainha decorada de pedrarias. Usava calças com culotes e lustrosas botas de montaria, até os joelhos. Era totalmente branco, o fantasma. Translúcido como, água com farinha.

— Estou sonhando, não estou? — perguntei.

— É óbvio! Naturalmente.

— O que o correio do... Kaiser... tem a ver com... Disseste que papai morreu?

— Brilhante! Entendeste sem que precisasse repetir. Mostra um intelecto admirável para um bebezão... Tenho que partir, agora.

— Bebezão? Espera, mas...

E se foi por três anos e meio.

Da próxima vez que o vi foi quando tia Elizabeth foi tomar banho de rio com seu namorado. Não que se soubesse disso, à época, ela dissera ir a confeitaria com amigas, mas que nada... Herr Ludvic Von Brügmann apareceu de novo.

Acordei de sono pesado que mal permitia que minhas pálpebras abrissem. Nunca adivinharia que novamente me convocava. Fui, sob garoa fina, até o poço. Puxei as tábuas que o cobriam exibindo a boca escura e banguela para o céu. Lá dentro, no negrume, pisando a superfície da água sem afundar, estava ele. Surpreendentemente, pus-me a pensar que o que acontecera na outra ocasião não havia sido um mero pesadelo premonitório. Estava acontecendo de novo!

— Antes que tomes demais de meu tempo, tenho apenas cinco minutos. — Disse, olhando um elegante relógio de bolso com corrente, que retirara da algibeira. Voz ecoante e carregada de forte sotaque germânico, como antes. Falava com tal intimidade que parecia que costumássemos nos falar diariamente.

— Quem?

— De novo! De novo! Ora, sou eu Brügmann, seu kameraad para más notícias, lembra-se?

A dor de sua primeira visita retornou. Fiquei aturdido pela arrogância da aparição que me fazia levantar durante o sono pela segunda vez na vida, o que para mim já era suficientemente irritante. Aliás, levantar durante o sono era exatamente o que sabia estar fazendo. Não era sonho algum! Impossível, embora minha sanidade fosse posta à prova. Segundo se dizia, beliscões não doíam durante os pesadelos, e eu estava já suficientemente dolorido em algumas partes do corpo, provando a mim mesmo, vezes seguidas, que não dormia!

— Tu me disseste da outra vez que papai havia falecido!

— E não foi?

— Sim... Morreu.

— Exato. Exato. Um rebelde... Agora venho falar de tua tia e madrinha de batismo, Elizabeth, ela também desencarnou, precisamente há doze horas e dezessete minutos... Afogada. Despudoradamente nua, é assim que será encontrada. Gerará os mais torpes dos comentários!

— Tia Betinha? O que... — Ela sumira, sim! Ficamos procurando por ela a tarde toda, até a polícia foi chamada. Continuei balbuciando. — Disse que iria à “Casa Predileta” com amigas de conservatório, depois... — Não compreendi, a princípio, o que fazia. Mas estava falando com algo me se dizia um fantasma e argumentava com ele como se fosse o mais natural, numa situação daquelas. A voz parou na minha garganta, então.

— Balela, balela. Foi com o namorado nadar no rio e morreu afogada, abraçada ao cafajeste.

— A... Abraçada?

— Não tecnicamente... isto é... Estavam abraçados no início, digo... mas depois estavam agarrados um ao outro porque nenhum dos dois sabia nadar e... cada um tentava se suster ao outro para salvar a própria pele.

— No rio! Mas... o que faziam? O que...

— Ora rapazinho. É obvio o que faziam. Você só diz obviedades? Quantos anos tem mesmo? Treze?

— Sim... Treze, mas...

Asdruck von Überraschung, Enttäuschung oder Aufregung. Tenho que moderar minha língua. Desculpe, garoto. Realmente gostaria de ficar mais, mas tenho que viajar até a Índia... Rebeldes, sabe? Como teu pai. Os ingleses são bem irascíveis... Como os portugueses! Eles ainda governam teu país? Ah! Não mais... Me esqueci? Falha minha. Mas sim, a Índia... Muita gente morrendo... Essas coisas.

E se foi.

Nunca parei de me perguntar sobre as visões nefastas que me faziam imaginar aquelas coisas. Sei que as mortes de gente tão querida poderiam pôr-me em estado mentalmente delicado a ponto de deixar-me levar pela imaginação, é certo! O choque da perda, os parentes se lamentando de brigas tidas e alegrias repartidas. Todo o clima de comoção e de espanto devido a tristeza. Mas não me parecia adequada a sensação que tinha sobre estes funestos acontecimentos, já que o tal fantasma aparecia antes de se saberem de tragédias consumadas. Vinha, falava e acontecia. Batata. Teria eu o dom para o fantástico?

Por ocasião da morte de meu tio Lucas, não vi o fantasma. Aliviei-me enormemente. Fiquei deveras convencido de que tudo afinal se tratara de alucinação. Julguei-me livre da doença, mas tudo retornou como antes quando foi a vez de Rosaligia, nossa empregada. Uma segunda mãe para mim.

Quatro tranqüilos anos depois da morte da safada da tia Betinha, ele, herr erscheinung, ressurgiu. Acordei (como se puxado da cama) e fui (como se empurrado) até o porão, de novo.

— Mas que diabos! Brügmann.

— Cuidado fedelho! Os infernos podem te escutar...

— O que fazes aqui de novo? — A pergunta era óbvia, mais uma vez. O fantasma ficaria irritado, mas que ficasse! — És fruto de minha mente. — completei.

— Fruto de tua... Ora! Nunca fui tão insultado! Pois saiba que sou um mensageiro real, duas vezes condecorado pelo Barão de Holfsburg por prestativos serviços à coroa. E além disso não tens uma mente tão criativa, não te gabes disso, fanfarrão. Que frutos poderiam advir dela? Mentir é só o que sabes fazer. Mas, respondendo a tua argüição, é óbvio que estou aqui porque alguém morreu!

— Não é, senhor sabichão! Não vieste quando tio Lulu morreu!

O fantasma levantou as sobrancelhas. — Espero que não tenhas sentido saudades mein junge. Eu não senti! Não vim porque não gostavas dele mesmo. Meu contrato reza especificamente esta alínea com uma frase em negrito. “Só venho quando te importas”. Não gostavas dele. Mal o conhecias. Não derramaste uma lágrima por ele, não foi? É isso. — o espectro cofiou o bigode. Então o óculo desprendeu-se de sobre a bochecha macilenta e caiu pendurado numa fina corrente. —Ah! Não vim também quando aquela empregadinha de tua mãe, dama de toucador, não estou preciso como podem se chamar estas moças. Enfim... Ela morreu em janeiro de doenças do pecado. Não vais reclamar também de minha ausência por ocasião se seu funeral?

— De quem falas? Ah... Imagino que sei, mas ela não trabalha mais aqui desde o início do ano retrasado. Mamãe a demitiu. Não me lembro se era Lurdinha...

— És bem falso, não é rapagão? Lourdes foi quem te iniciou nas libidinosas artes de Eros. Agora tratas da carne que te alimentou assim de forma tão displicente?

— Não sei de que...

— Continuas mentiroso. O tempo passa para ti e assim continuas... Mas não te preocupes. Nada tenho a falar-te com relação a moça. Se fosse importante para ti eu saberia.

— Importante? Que tipo de espectro maldito és? Veio me trazer mais notícias agourentas?

— O que faria aqui se assim não fosse? É meu trabalho!

— És então a Dama da Morte, Brügmann — estava assustado. Alguém de quem gostava morrera. Não queria demonstrar mas estava começando a entrar em pânico, mas algo me fazia achar que estava seguro.
— Nada! Conclusão falha mas perfeitamente adequada ao intelecto em questão. Não sou a Morte. Ela leva, eu apenas aviso que ela levou. Sou um mensageiro. Só digo o que já aconteceu, não invento nada. Oh, não!

— Não! Não me digas mais nada!

— Nem ao menos quem foi?

— Nada. — e corri para dentro de casa.

Mal tive tempo de me conter. Mamãe foi achada sem vida na manhã seguinte.

O tempo passou e outras pessoas se foram. Mas depois de mamãe, me tornei cético e para sempre fixado no fantasma. Fui morar na fazenda, que vendi quando o dinheiro começou a faltar. Voltei para a cidade e cursei a faculdade do Largo de São Francisco a altas penas, pois passava a maior parte do tempo metido com más companhias. Nos momentos em que a angústia mais me abatia, perdia-me no xerez e no ópio.

Cada pessoa que morria então, não me causava mais o menor sentimento de perda. Não havia mais ninguém de que gostasse. Isso fez com que o fantasma não mais viesse por muito tempo. Nada me interessava. As notícias dos jornais não me chamavam a atenção nem mesmo quando aquele pintor austríaco se tornou a Führer de toda a Alemanha. Brügmann deveria estar delirando de felicidade.

Não tinha irmãos ou outros parentes. Qualquer dama da sociedade não me despertava sentimentos maiores que aqueles que obtinha às custas de alguns tostões nas vívidas casas de tolerância.

Amadureci sem nunca ter me casado ou gerado filhos, para não amá-los suponho. A solidão veio me tirando a disposição que ainda tinha, tornando mais pesadas minhas pernas e as vontades menos ferrenhas. O emprego numa repartição pública não me negava o necessário para sobreviver. Almoçava sozinho sentado num banco de praça, tendo os pombos como companheiros, a quem atirava migalhas. As pessoas passando, nas suas vidas e nas suas mortes.

Foi numa manhã ensolarada de sábado, na pracinha perto de casa que vi então uma velha senhora caminhando. Reconheci-a como sendo a mulher que lavava roupas para minha família. Tive um impulso de me levantar e ajudá-la. Acompanhá-la até sua casa e lhe dar algum dinheiro. Mas não... Sentei-me de novo no banco. Só olhei. Estava tão velha que quase não agüentava a trouxa de roupas que carregava. Ainda trabalhava, velhinha que estava. As pessoas pobres viviam de sofrimento e morriam para descansar.

Não passou uma hora e ouvi um assovio que vinha do bueiro em frente. Na guia da sarjeta fui olhar, e lá dentro estava o fantasma. Não soube o que dizer, olhando seu semblante pálido. Me avisava que Dona margarida, a lavadeira tombara sobre a tina d’água de fulminante ataque. Morrera, logo após vê-la indo para a lida. Trabalhara até a morte!

Ao que parece, naquele dia as coisas mudaram para mim, e passei a ver Brügmann de novo, todos os meses, depois todos as semanas e depois todos os dias. Era por causa do passamento do vendedor de coxinhas que me trazia o almoço diariamente, ou era por causa de alguma mãe velhinha ou então por que o menino que brincava de bola fora descuidado, ou a moça desiludida, que não sabia o nome, que trabalhava à mesa ao lado e que perdera o noivo para outra. O bombeiro que vira no quartel, um dia; o motorista do caminhão de entregas, o padre da paróquia, o soldado da polícia que controlava o trânsito...

Mas estranhamente, não vi o fantasma quando morri. Naquele dia veio a Boa Dama, vestida de preto. Fiquei em dúvida se era, talvez, porque não me importava comigo mesmo quando descobri, sinceramente, que me importava. Ou talvez fosse porque não podia ver meu amigo, antes da morte fazer seu trabalho.

Vingança

Por Albarus Andreos
Em 17/ 04/ 2007, para o Leia Livro.

“Afinal, quem disse que essa coisa de estratégia global é para os políticos, militares, terroristas e estrategistas? Antes de mais nada, diz respeito a nós, os alvos.”
Roberto Causo – escritor

O que vou contar é uma história de vingança. De amor e ódio. História de gente sofrida como eu e você. Também uma história de sofrimento e de ruindade. Não leia se tiver mais amor que ódio no coração, pois aqui ensino que vale a pena tirar com a mão o que a mão de Deus perpetrou e, ao mesmo tempo, fazer da sua, a mão Dele.

Era uma tarde se segunda-feia, início de outono. Janaina acabara de voltar do quiosque onde trabalhava, em frente a represa de Sarapi. Passava os dias lá, de segunda à domingo, para ganhar quatrocentos reais, além de vales-transporte. Fazia sucos, limpava mesinhas, agüentava cantadas.

Janaina pensava em Ana Flora, sua filhinha que criava só. Ela se deixava humilhar para conseguir continuar empregada e poder cuidar dela. Largava o serviço sempre às cinco e ia para a creche buscar a pequena. Fazia isso como uma tarefa que iluminava seu dia, embora tão cansada que nem era capaz de imaginar outra forma de se sentir gente. Ana Flora era seu alento e preocupação ao mesmo tempo. Seu olhar dizia para a mãe que ela existia e que respirava. Era gente pobre, mas era gente amada.

Porém, naquele dia, tudo se mostrara diferente. Estava sendo seguida. Vira o cara subindo no Escort. Olhou muitas vezes pela janela do ônibus e viu-o por entre a poeira da estradinha. Vinha cobrar dela o tapa na cara. O tapa que fora pouco por ele ter afundado o dedo médio no seu traseiro, sob sua saia... Thomás de Aquino retirara o atrevido da cantina com uma gravata, e o deitara na grama com porradas. Era contudo, homem gentil, quase sempre. Tomava conta das moças durante o trabalho. A sutileza do assédio sexual para com as garçonetes não era regra. Todos os dias havia grosserias, risinhos e convites.

Em parte isso era culpa de Aletério, o dono. Ele contratava as meninas mais bonitas do bairro para trabalhar na represa onde controlava o quiosque e a venda nas mesinhas e cadeiras de praia que alugava. Ele vendia pó também, e usava o quiosque para atrair seus amigos e os filhinhos de papai. Os riquinhos, as moças tiravam de letra, mas Thomás de Aquino desta vez batera feio num membro da Sacolinha, como era conhecida a polícia do condomínio de Alto Salvador. Sacolinha porque eles passavam a “sacolinha” cobrando proteção dos comerciantes. O que apanhara era um cara mau que tinha sido afastado da polícia do exército por traficar dentro do quartel do Décimo Primeiro de Artilharia Blindada. Era quase surdo, diziam, e vingativo. Era grande o cara, mas Thomás dava dois dele.

Não ficou contente de ser judiado na frente dos companheiros de farra. O PE não encarava o Thomás de quem já havia apanhado outras vezes. Mas eu era mais fácil.

Desci no ponto da rua do Francês, em frente à casa de umbanda de Filomena. Ali dei uma corridinha. Já eram seis e meia da tarde e o ônibus tinha demorado mais que de costume devido a desvio na altura da ponte que vinha pra cidade. A irmã sabia que eu nunca deixava de pegar a neném e por isso ela iria me aguardar. Não era a primeira vez que me atrasava também. “Pobre só tem hora é pra morrer”, dizia meu paizinho. A irmã sabe.

A Escadaria da Penha era um beco escuro, já no início de noite, dentre paredes de tijolos sem reboco. Fios e “gatos” cruzavam por cima, por todo o trajeto. Antigamente tinha um encanamento de manilhas por onde escorria o esgoto miúdo do bairro alto para o canal lá em baixo, mas alguém roubara as manilhas e agora a sujeira vinha a céu aberto mesmo, comendo a terra ao lado da escadaria que ligava a parte baixa ao Largo das Enfermeiras. E foi na subida da escadaria que eu percebi o Escort parado no final, lá na rua. Não deu para pensar mais nada. Ali o PE me atacou. Quebrou meu nariz no primeiro soco. Depois esfregou meu rosto nos tijolos, até o osso. Gostaria de lembrar o que ele dizia, mas não lembro. Me xingou muito. Quebrou minhas duas pernas pisando nelas, sobre os vãos dos degraus e me estuprou. Não lembro se foi nessa ordem, não importa. Mas escutei uma coisa: “vou te matar!”. Não esqueço disso. Ele disse e ficou. Ficou como a frase que Thomás de Aquino disse quando tirou a mão grande dele da minha bunda, no bar. Thomás disse: “Respeita a moça! Tenha respeito, safado!”.

Queria acreditar que ele fez o que fez porque era o que devia fazer, como segurança do quiosque, mas se fosse assim teria só chutado o cara e posto ele pra correr. Não! Thomás ficou zangado de verdade. E não foi a primeira vez que meu “anjo-da-guarda” me livrou de boas. Ele um dia até me emprestou uma grana. Sem que precisasse pedir, porque pedir eu não tinha coragem mesmo. Deu sem cobrar jamais o dinheiro de volta, mas eu devolvi, é claro. Duzentos reais que me faltaram num mês que tive de ajudar na casa de minha tia em Minas. Dinheiro que tive de mandar porque ela estava doente. Eu sabia que Thomás era mais pé-rapado que eu, por isso jamais teria coragem de pedir. Mas ele trouxe no dia seguinte. Saiu do quiosque antes de mim e veio dar para irmã, na creche, porque sabia que eu precisava. Se não fosse eu apertar a velhinha ela não ia me dizer quem foi. Que coração, tinha o Thomás...

Nove meses se passaram até que eu acordasse de novo. Minha tia Eunice tinha vindo de Minas e levado Ana Flora para ficar com ela enquanto eu convalescia. Tinha cuidado da neném durante todo esse tempo, só com sua pensão mínima. Jamais vou poder agradecer a ela por isso. Mas não tinha tanta gratidão no peito, não. Não tinha muito medo também. Tinha é ódio.

O choro de minha filha, quando me viu, mostrava que algo tinha mudado, e mudou. Não me reconhecia devido às cicatrizes e inchaços que ainda persistiam. Agora eu era um monstro, cheio de dor e agonia por ver nos olhos de minha filha uma desconhecida. Não tinha mais meu rosto. Não tinha sequer um, na verdade. E demorou para eu andar de novo. Uma perna estava cinco centímetros mais curta que a outra. Passei a mancar, o que superava as expectativas dos médicos do hospital público, contudo. Achavam que eu ia ter de usar aparelho para andar por muito tempo ainda, ou pior. Pedi que titia levasse Aninha de volta para Minas, que continuasse cuidando dela.

Passaram-se mais uns meses. Era dia de São Judas Padroeiro. A quermesse na igreja estava animada e eu trabalhava numa das barraquinhas. Desde que perdera o emprego no quiosque vivia de favor dos outros. Não era mais bonita e nem sabia mais atender pessoas, com o coração seco que passei a ter. Ajudava na recepção da igreja e a irmã me garantiu um salário mínimo para me manter. Ela perguntava de Ana Flora, mas não a via há muito tempo já. Sentia até saudades, mas no meu peito, como disse, só tinha espaço para a raiva. Eu mudara muito. Minha desforra viria um dia!

Numa ida a casinha passei perto do estacionamento, onde as famílias boas deixavam os carros caros e reluzentes aos cuidados de um menino que cuidada deles. Tínhamos estudado juntos, mas não lembrava seu nome. Sempre deu em cima de mim, como todo mundo. Mas isso ficara no passado. O destino quis que eu o ouvisse falando no celular. Não percebeu que eu vinha. Foi quando, em dez segundos, planejei minha vingança.

O menino estava passando informações de uma caminhonete bem na frente. Cor, modelo, novinha... parece que já havia cliente para ela. Em vinte minutos alguém viria para levá-la.

Não hesitei. Dali, fui para o orelhão e passei para a polícia do condomínio a ficha toda. O roubo iria ocorrer em vinte minutos mais ou menos. Dava para pegar no flagrante. Daí foi que disse a frase que mudou minha vida. “É coisa de gente de fora. Foi... o Marçal Índio quem mandou avisar.”

Marçal era o prefeito. Era também quem dominava o roubo de carros e carga por toda região e, segundo já ouvira no quiosque, tinha ligações até com outros estados. Garçonete ouve muito porque é invisível. Ninguém dá nada por moça que trabalha em bar. Ninguém liga, não dão atenção nenhuma. É bicho... escuta mas não fala.

Há vinte e poucos anos, o Índio se revezava na prefeitura com o filho e o genro, mas este último, ele mandara matar por ter tentado voar com as próprias asas. Era o que ouvira, uma vez...

PE cairia na história porque era pago pelo Índio para fazer vista grossa aos negócios ilegais dele. Muito bem pago, diziam. Ele certamente atenderia a um pedido do prefeito. Pedido do Índio era ordem. Desligou o telefone dizendo obrigado, o desgraçado... Quase disse “sim senhora”. Aquilo tudo fazia muito sentido! Ele caíra como um patinho. Não se lembrava mais de mim. Até minha voz era diferente devido a paralisia facial que adquirira. Gostaria que ele tivesse, pelo menos, desconfiado de quem falava com ele, que soubesse quem havia armado tudo. Mas era melhor assim.

Dei uns dez minutos... Tudo estava pronto na minha cabeça. Viera do nada, mas sabia exatamente o que fazer e não era bonito. Não ligava! Não tinha escrúpulos. Janaina morrera com um tiro, naquela vez. Agora era outra pessoa quem planejava a vingança. Era dia de São Judas, e tudo daria certo.

Dei um jeito de achar o menino que trabalhava de olheiro para o Índio. Ele não me reconheceu, como todo mundo. Costumava me cantar quando eu trabalhava no quiosque, tínhamos estudado juntos... tive que contar isso pra ele saber quem eu costumava ser, quando ainda tinha um rosto. Ele franziu o cenho horrorizado. Depois riu de mim. Tinha nojo. Mas eu sabia me entender com gente assim. Principalmente se envolvesse sexo de graça, no escurinho. Disse para ele que continuava a mesma, do pescoço para baixo (mentira, já que precisava andar na ponta do pé esquerdo, para não mancar). Ficara o tesão reprimido por mim embora o que tivesse era as sobras de um prato farto de outros tempos. E daí? Gente como ele, que eu nem lembrava o nome, era muito pouco exigente. Me passou a mão... Aceitou.

Fomos para o estacionamento, escolhi o lugar estrategicamente, atrás do sansão do campo, sobre um barranco baixo, no escuro. Mal tinha começado o boquete quando ele percebeu que, de onde estávamos, dava para ver o roubo que ocorreria dentro de minutos. Percebi que ele esticou o pescoço, sua atenção ficou focada em algo que se desenrolava ali embaixo, no estacionamento. Ele me agarrou pelos cabelos e fez sinal para que eu não desse um pio.

Vimos dois guardas atrás de um carro, espreitando. Ele tentou apanhar o celular e chamar alguém, mas imediatamente apareceu o ladrãozinho, que checou para ver se estava tudo limpo antes de meter uma ferramenta qualquer na porta da pick-up e desligar o alarme. Não tinha ainda entrado direito no carro, de porta aberta, quando saltaram o PE e o outro guarda apontando armas para ele. Deram voz de prisão, suponho.

O menino, comigo, tremia como vara verde. As calças arriadas até os pés sob pernas magricelas, quase sem pêlos. Se abaixou e se encolheu mais. PE e o outro, aproveitando-se do ambiente ermo, agora cobriam de cacetete o ladrão. Bateram muito nele. PE gostava de bater. Ouvi ruído do braço sendo quebrado. Me fez vomitar. Senti aquela dor, de novo. O ladrão ficara inconsciente. Tudo tinha dado conforme meu atribulado plano. O menino iria contar que fora PE e outro guarda quem haviam ferido e impedido o roubo. Marçal Índio não ia deixar barato. As pernas do polícia seriam quebradas também, ou coisa do tipo. Eu ri por dentro. Um riso quente e sem substância, coberto por sofrimento, mas um riso profundamente satisfeito com o que aconteceria no dia seguinte.

Foi então que as coisas foram além. É como Deus te mostra que ainda está no controle. O outro guarda foi à viatura, atrás de um barracão pegar algemas ou passar um rádio à polícia militar, falando da ocorrência, mas PE era psicopata. Retirou uma lâmina do bolso que rebrilhou na pouca iluminação que vinha da quermesse além, e enfiou-a no pescoço do ladrãozinho. Lágrimas saltaram de meus olhos. O menino, aos meus pés, não conseguiu segurar o conteúdo das próprias tripas... O outro guarda começou a gesticular e discutir abertamente. Mas quem mandava na dupla era PE, que colocou o dedo na cara do colega e falou coisas que imagino vagamente o teor, já que não ouvia quase nada. Depois olharam em redor, mais uma vez. Não me viam. Não havia ninguém. Imaginaram que ninguém vira o ocorrido. A viatura da Sacolinha se foi rapidamente, levantando poeira. O corpo ficara para trás para alguém achar. O menino comigo, tampava a boca com a mão, tão fortemente que a cara toda estava adormecida. Seus olhos estavam arregalados. Seu rosto descorado de terror.

“Vou... contar para o Marçal!”.

Estava feito. Lembrei então de Thomás... lembrei do dia...

Ele veio quando PE tinha acabado de gozar. Veio de algum lugar que não vi, provavelmente subindo a escadaria, porque não teve tempo de chegar, gritando, louco da vida. Acho que Thomás me amava, mas nunca disse nada. Havia me seguido, como eu às vezes percebia que ele fazia. Havia seguido o Escort do PE, desconfiado. Pulou para cima do maluco e eu só ouvi os barulhos de estourar os tímpanos. Tamanho não importa contra um trinta e oito. Levou cinco tiros. Teria morrido se Thomás não tivesse aparecido e ficado com a maior parte das balas. PE se conteve e deixou o último cartucho para mim. Tenho cabeça dura, como papai dizia. Só isso explica porque a bala resvalou no osso ao invés de estourar o crânio. Isso e o fato de que Deus queria que eu me vingasse; desse o troco pelo que foi feito a mim e a meu amigo.

Ao contrário dele, não morri.

No dia seguinte o jornal dava conhecimento de corpo encontrado degolado na quermesse da matriz de São Judas; mas era outra notícia, cuja foto estampava a edição, que me interessou mais: “Viatura policial incinerada em canavial”.

“...dois corpos foram encontrados carbonizados na estradinha da usina. Dentro da viatura incendiada, os dois policiais estavam algemados ao volante do veículo, sem marca de disparos, sinal de que provavelmente teriam sido queimados vivos...”

Decidi partir. Já não tinha mais nada o que fazer depois da vingança alcançada e mudei para Minas. Chegando, Aninha me reconheceu. Como se durante o período, entre meu acidente e aquele em que a via de novo, eu tivesse sido realmente outra pessoa, e voltasse a ser eu mesma, agora. Me chamou de mamãe. Nunca mais ligou para meu rosto ou para meu novo jeito de andar. Pediu só que eu nunca mais a deixasse, o que prometi com sinceridade. Voltei a ser Janaina então e, por tudo que é essencial e sagrado, procurei esquecer o que tinha ocorrido. Contudo, antes de dormir, todas as noites rezo junto de Ana Flora, e peço a Thomás de Aquino, que está no céu, que proteja minha filhinha. E ela, de mãozinhas juntas, insere: “Anjo-da-Guarda, me guarda”.

terça-feira, 19 de junho de 2007

O Sunburst

Albarus andreos
fevereiro de 2007.

Raimundo tocava modas. Tinha orgulho de ser violeiro e ganhar o dinheiro do sustento dessa forma quando da entressafra da cana. Era muito melhor que viajar para Minas e passar meses manejando o podão.

Tivera só um filho, seu orgulho. Botara-lhe o nome de Wecslei, nome americano como ele próprio sonhava em ter recebido. Mas seus pais escolheram mesmo o nome que tivera o avô.

Estava sentado na soleira, a noite brilhava com lua sobre o casebre. Seu filho brincava de lado com o cachorro enquanto ele dedilhava o violão surrado. Raimundo parou para olhar a estripulia no meio das palhas de milho donde tirou um pedaço para fazer um cigarrinho. O menino era sempre fechado. Quase nunca brincava. Cuidava do pai como se pai fosse. Vivia amuado quando Raimundo dedilhava as modas que sabia de cor.

Quando Raimundo pensava nisso ficava triste, pois não tinha nada para deixar ao filho caso um dia lhe faltasse. Como havia lhe deixado a esposa, catorze anos antes, assim que parira o menino. Não tinha terras nem carro. Mesmo essa casa era cedida pelo dono da fazendo onde Raimundo cuidava de umas vacas. A única coisa que tinha era a música que, recentemente, até lhe tinha rendido seu primeiro dinheiro não contado, quando junto com o filho do fazendeiro Zé Batista do Encantado, formara dupla e cantara na rádio a cidade. Era rapaz vinte anos mais moço, loiro e com cara de americano, como Raimundo queria que seu filhote tivesse nascido. Mas quanto a isso não podia fazer nada. Wecslei era mulato como o pai e assim seria para sempre.

Ganharam setenta reais cada um, e esse dinheiro Raimundo guardara bem guardado. Era mais dinheiro que ele jamais tivera todo junto, de uma vez só. Planejava gastá-lo na zona, mas Raimundo pensou. O futuro do pequeno merecia mais. Se não tinha mais nada para lhe deixar a não ser o gosto pela música, com setenta reais compraria para ele um violão novo, coisa que ele nunca tivera, já que o seu próprio ele havia roubado de uns crentes, quando tinha quinze anos e era dado a safadezas perigosas.

Levantou-se cedo na sexta-feira e deixou o gado à sorte. O patrão havia viajado, e nada de mal poderia acontecer. Iria a cidade no ônibus que passava entre as oito e oito e meia defronte à sede. A perua da prefeitura apanhou os meninos às sete, levando-os para a escola e Raimundo esperou até as nove, quando apareceu a condução, excepcionalmente atrasada àquele dia. Só então lembrou que trouxera o cachorro junto, como fazia todos sempre. Ato contínuo, assim o fazia e não se dera conta que dessa vez não voltaria ao pasto para tocar os bois.

O Motorista não queria deixar o animal entrar e só quando Raimundo se ofereceu para pagar outra passagem, como se dinheiro não fosse problema, é que o comandante aceitou o novo passageiro. Raimundo não se fez por convencido e botou o bicho sentado num banco, ao seu lado.

O fato o havia irritado. No sacolejar do caminho pensou com desânimo não poder ir ter com as putas como havia planejado inicialmente. Havia lá uma de nome Bruna que se dizia surfista, mas Raimundo não entendia por quê isso era importante. Então veio-lhe o remorso por ter esquecido, por um instante, do futuro de seu filho. Afinal não tinha problema com mulher. Nunca se casara de novo, mas sempre achava uma que lhe desse trela quando tocava nos bares e botecos da região, por isso o dinheiro seria melhor gasto com o violão; o único futuro que podia deixar ao seu filho era a música, resignou-se.

Desceu na rodoviária e foi ao banheiro para se aliviar. O cachorro ficou de fora, sem coragem de entrar. O cheiro era ruim, mas sabia que na cidade não podia fazer as coisas na rua. Um preto se aproximou e lhe encostou uma faca. “Me dá tudo o que tem” disse. Enfiou a mão com violência no bolso do peão e depois se foi. Raimundo perdeu a carteira. A mente todo o tempo no filho que deixara, imaginando se havia chegado sua hora sem que pudesse ter cumprido sua missão para com ele. Mas o dinheiro que ganhara na rádio estava no outro bolso, ainda no mesmo envelope que recebera dias antes. Todas as sete notas novas de dez reais. Raimundo tirou o chapéu e, tremendo, olhou o santinho de Nossa Senhora de Aparecida preso no forro. Agradeceu por não terem lhe levado esse dinheiro também. Em seguida ruborizou-se por estar exibindo à Santa os mictórios da estação. Prometeu em seguida nunca mais mijar num banheiro de rodoviária.

Seguiu na avenida em direção a loja de música. Passou defronte a uma banca de frutas onde viu coisas que jamais vira plantadas na região, como lixia e castanhas de macadâmia. “Frutas americanas” pensou, sem entender por que as pessoas comeriam coisas que não fossem plantadas em sua própria terra. O estômago roncou e lembrou que nada comia desde o jantar da noite anterior. De costume, sempre tomava um caneco de leite tirado da vaca, todas as manhãs mas não hoje. Era dia de comprar o violão para o filhote, orgulhou-se. A música era sua herança.

Escutou então uma freada de carro e um baque forte. Muito tarde percebera que o cachorro nunca andara antes na cidade. Foi esmagado por um caminhão de entulho que saia de uma construção. “Pobre do animal” disse um pedreiro, ao que o motorista deu com a mão dizendo que a culpa era do bicho mesmo.

Raimundo trouxe o vira-latas estuporado para a guia da calçada, perto de um bueiro e ali passou a mão na sua cabeça fiel pela última vez. Nunca mais o veria. Seu queixo tremeu e uma lágrima lhe veio aos olhos. Mas agora tinha que comprar o violão.

Caminhou duas quadras e ouviu as sirenes que vinham de um carro dos bombeiros que avançava devagar segurando o trânsito. Nuca havia visto um bicho daqueles, e sua tristeza o abandonou de imediato. “Campeão das Paraolimpíadas” disse alguém que passava. A pessoa se referia ao rapaz confuso sobre o caminhão, que carregava uma medalha de ouro no pescoço, mas que não tinha nenhum dos dois braços. Ele tentava sorrir e se esforçava por cumprimentar a população que parava e aplaudia. Raimundo aplaudiu também sem entender o porque, já que lhe parecia que essas Paraolimpíadas eram um negócio muito perigoso!

Ao chegar a loja, logo que bateu os olhos na vitrine decidiu que violão queria. O vendedor lhe mostrou um “Sonante tipo Sunburst”, foi como ele o chamou. Raimundo achou perfeito, pois além de bonito toda a vida, tinha também nome americano. “Embrulha para presente”, mandou.

Como o homem não tinha papel de embrulho, Raimundo pôs a caixa de papelão embaixo do braço, com todo o cuidado, e foi a papelaria em frente comprar papel colorido. O presente tinha que ser completo. Para sua surpresa, lhe atendeu a lourinha rechonchuda da zona. “Bruna”? Perguntou. “Maria Eliza” respondeu ela assustada, os olhos arregalados de surpresa. “Aqui é Maria Eliza” completou quase num sussurro.

Não lhe sobrara dinheiro suficiente para pegar um ônibus de volta. Mas poderia comprar algo para comer na feira. Raimundo ficou orgulhoso e as contrariedades lhe pareceram mínimas se comparadas com sua vida sofrida. A esposa teria orgulho dele. Se lembrava dela com saudades. Carolina Usquielli era seu nome de solteira, e Raimundo nunca quis que ela usasse o seu, depois de casados. Achava o próprio sobrenome feio. Ela morrera dois anos depois de chegar de Santa Catarina. Era pobre come ele, filha de um galego que viera tentar a sorte. Só vivera o tempo de parir e uma semana depois foi juntar-se a mãezinha do céu.

Comprou uma garapa e um pastel pois já era hora do almoço e em seguida tomou a estrada de terra, com todo o cuidado para que o suor não estragasse o papel brilhante e vermelho do embrulho. A cor, por mais estranho que pudesse parecer, lembrava a calcinha de Bruna, da última vez que a vira dançar a “Conga” no palco de madeira mal cuidado lá do lupanar.

Já havia ganhado o caminho a um bom par de horas, quando veio-lhe uma repentina caganeira e teve que se retirar da estrada. Passou pelo arame farpado com todo o cuidado para não danificar o Sunburst e aconchegou-se apressado atrás de um cupinzeiro e ali mesmo se aliviou. Mas para se limpar só tinha o lenço branco, único presente da esposa morta. Lá estavam bordadas as duas iniciais dela C. U.

Viu-se na propriedade do turco, Seu Jajá, e que se cortasse caminho pelo bambuzal em direção ao rio, logo chegaria ao arraial. A idéia não era das mais atraentes, visto os problemas que tivera no passado com o fazendeiro, mas após tanto esforço e aborrecimento, um encurtamento de trajetória vinha a calhar. Não podia esperar para ver o rostinho de seu pequeno, quando visse o violão. A música que o pai fazia estaria então oficialmente passada para o filho e ele poderia até morrer em paz.

No arraial deu-se por feliz, já que deixara o sítio do turco sem problemas, mas quando passava defronte à venda — que por capricho do destino pertencia ao mesmo Seu Jajá — avistou o vendeiro e este espremeu os olhos adivinhando quem era ele também. Não o via desde que se mudara do arraial, anos antes. Mas o turco parecia ainda se lembrar da dívida que Raimundo deixara. Escondeu-se meio apressado detrás do violão e foi, sem mais problemas.

Dois quilômetros depois, no meio do areião, encostou uma Veraneio e de dentro dela saltou o vendeiro e dois empregados que lhe deram uma surra violenta com pedaços de pau. Raimundo foi muito machucado. Pouco antes de ir embora, já com os dois empregados dentro do veículo, Jajá se aproximou de sua vítima no chão, enlameada de sangue e terra. “Isso foi por você ter comido minha Luzia, safado!” Raimundo não conseguiu responder. Nunca havia comido a mulher do turco. Não sabia do que ele estava falando. Só saíra meio fugido dali por causa da dívida no bar. Mas Deus tem Seu jeito de fazer justiça. Raimundo apanhara e Jajá batera. Isso estava certo.

Jajá cuspiu nele e entrou no carro. A Veraneio manobrou para retornar por onde viera. Raimundo rolou para uma vala do lado do acostamento para não morrer, mas as duas rodas da direita passaram sobre a caixa. O ruído do Sunburst sendo estraçalhado ficou marcado em sua memória, indelével como a frase que não conseguiu gritar de medo: “Corno filho da puta!”

Era noite alta quando Raimundo chegou. O filhote lhe havia preparado o que comer. Raimundo de olhos embaçados lhe contou que havia lhe comprado um violão, mas que Deus havia decidido que isso não era o melhor para ele, e que por isso o havia tirado. Havia outras coisas reservadas para o menino.

Wecslei disse então que, na verdade, não gostava de música. Odiava quando o pai lhe punha para escutar as modas e que, por isso, não devia ficar tão magoado.

Raimundo estava atônito e tão chocado que decidiu ir dormir. “Pai”, chamou o pirralho logo atrás dele. “O cachorro sumiu”, disse. Raimundo estava de costas, por isso permitiu que as lágrimas rolassem. “Pai”, Raimundo parou de novo. “Ao invés de um violão, por que não me dá um dinheiro para eu ir na zona?”.