O sol já vai nascer. Restam-me poucos minutos antes que minha criatura venha me buscar. Fico aqui no seu aguardo, já sabendo o que me espera. Nada pode descrever minha aflição. Meu desespero é pelos sofrimentos a que serei submetido. A razão será tirada de dentro de meu crânio a fórceps.
Nem posso contar as madrugadas em que acorri para atender suas súplicas... Não! Não posso mais uma vez tomar partido dela. Não vou esquecer o motivo de estar escrevendo-lhe estas linhas, meu infeliz leitor. Não de novo. Não posso deixar-me convencer que é inútil minha luta, meu sofrimento. O mundo tem de saber o que fiz. É algo a que dei vida, e que está a pouca distância daqui, dentro desta casa, sob este teto de onde lhe escrevo, meu amigo. Perdoe-me. Se algum dia ler esta carta, é porque assim o destino permitiu, apiedando-se de minha miséria.
Estes minutos, antes de sua chegada são os mais intensos. Só queria poder dormir um pouco mais, só isso. Mas sei que logo escutarei seus passos leves vindo pelo corredor ainda escuro e seu vulto assomará na porta de meus aposentos. Silenciosa, sem estardalhaço como seria de esperar. Estarei de olhos fechados mas verei tudo. Queria poder me enganar que não vai acontecer de novo, mas no fundo sei que assim será, e isso só faz aumentar a angústia. Só queria poder dormir mais um pouco. Deixar-me abandonar nos braços de Morfeu e rezar para que os pesadelos não me alcançassem.
Às vezes fico aterrorizado, pois pressinto nitidamente que ela sabe o que penso. Ela lê meus pensamentos e usa isso para me massacrar. Minha cabeça parece querer estourar com uma dor que nasce na nuca e penetra obliquamente nos miolos até as têmporas. Há um aumento de pressão no meu peito. Minha agonia faz com que doa como em carne viva. Meu coração fibrila em descompasso, só aumentado a sensação de carne rasgando. Há aquele inchaço que se forma no pescoço devido à raiva contida a muito custo, querendo escapar por entre dedos frágeis que já não se lembram porquê conter o jorro da bile. Raiva que não pode ser libertada, porque eu sou o dono da culpa. Eu a criei.
Ela não deve perceber esta raiva. Não deve! Mas sei que percebe. Tenho que bloqueá-la, mas é difícil. Faz as pontadas no meu peito aumentarem. A criatura sabe e minha aflição redobra. Meu tormento se multiplicará por isso. Tenho que resistir pois ela sabe exatamente o que fazer para me machucar. Ela me conhece. A criação conhece tão bem ou melhor seu criador, imagem que é dele próprio, mas com uma ligação muito mais profunda, porque ao criador ainda houve um tempo anterior, quando ela não existia, em que era livre da maldição. Mas a coisa, ao contrário deste, só existe pela mão do criador, já que feita por ele. À criatura, o criador veio desde o início e sempre fez parte de seu universo. Adapta-se a ele desde seu surgimento, opondo-se cruelmente ao inepto que pateticamente se esforça por ser capaz de dominá-la.
Ela chega silenciosamente. A criatura sabe que eu a percebo ali parada e depois se movendo de novo. Sabe que a reconheço. Como poderia ser diferente. Eu a fiz! Cria minha, meu algoz e torturador, nesses dias em que as manhãs chegam ainda escuras com o prenúncio de sua vinda. Não seria desmesurado dizer que a mão do artífice prepara contra ele a maior das punições quando sua obra toma vida, como uma Galatéia às avessas a um Pigmalião desenganado.
Ouço a sombra chegando. Não deveria poder, mas sei que ela se aproxima. Oh, Deus! Finjo dormir como sempre. Meus nervos em frangalhos. Só queria dormir! Mas minha criatura chega, parando ao meu lado. Atraída por mim como sempre. Minha presença silenciosa é um chamariz para sua inocência primitiva. Agonizo de terror, mas então, mais uma vez como em tantas outras nestes três últimos anos em que a pus no mundo, sinto seu toque leve e frio no meu rosto. Ela fala com um sopro em meu ouvido. Um chamado que ela aprendeu com perfeição na sua curta existência. Burilada para incutir todo o pavor que sua condição pode conceber. Sem opção, abro meus olhos que imediatamente fitam os seus, pequenos, brilhantes e cinzentos, sobre sua estatura nanica. Como sempre, segurando uma fraldinha de pano contra o peito, ela diz: “Já ta claro, papai. Vamos assistir Discovery Kids!” E me puxa para a sala.
Deus... só queria poder dormir um pouco mais. É sábado e mal passa das sete da manhã.
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