Albarus Andreos
em 16/ Ago/ 2007.
Depois do almoço sempre ia com Durango, meu cachorro, à beira do rio. Eram tardes quentes aquelas do sítio da vovó. Sempre de torrar os miolos, não sei porquê. Naquela época, o calor parecia menos africano e mais californiano, pois o que importava era a juventude deliberada e o tempo livre para crescer como se deve. Eram tempos de meninice, de descobertas como esta que narro. Contudo, para o pesar de todos nós, discorro exatamente da tarde em que tudo isso acabou.
Mamãe preparava um pão com manteiga e polvilhava Nescau dentro dele. Aí embrulhava numa toalhinha xadrez e me dispensava com tapinhas risonhos. Às vezes levava um chá gelado com laranja, quando dava tempo. Então eu apanhava Durango com um assobio e corríamos para o brejo, numa carreira que fazia a barriga cheia de refrigerante sacolejar e o riso refrescar depois de um arroto. “Não corre que você acabou de almoçar”, gritava dona Berta, a mulher que ajudava vovó.
Mas correndo ou não eu sempre voava. Grandes tardes aquelas que tinha. Sim, por isso as tardes quentes. Óbvio! Férias de dezembro. E então, ia sem reserva. Lata e varinha numa mão, lanche de manteiga com Nescau na outra. Parava no brejo para cavoucar a terra e encher a latinha de minhocões graúdos.
Mal atravessava o brejo, passando por poças e troncos, dava na ponte do Imirim, e depois continuava por mais uma légua e pouco. Sempre havia coisas novas para ver: a casa do João de Barro se tinha concluído; um novo cupinzeiro ao lado da estradinha, enorme, como um urso sentado de costas para a estradinha; ali adiante as mangas já estavam “de vez”; taturanas aterrorizantes nas goiabeiras; os ovos do chupim já haviam eclodido no ninho alheio (e o tico-tico a cuidar deles sem se dar conta do tamanhão dos filhotes); tempo de içás, ou não; a terra do Seu Seiji Nakata arada e vermelha no alto da serra, e vermelha me pareia sua pele queimada de sol, dentro de mangas brancas e compridas sob chapelão despencado sobre o sorriso cordial; Seburano, o recém-comprado touro nelore de vovó, mais uma vez beirando a cerca de arame farpado de cinco fieiras, que teimava em sempre arrebentar (e o peão, Zé Fabrício, toca a impedir, montado em Maravilha, sua égua baia)... Sempre via e revia tudo de novo, deliciado. Lá para mais de uma hora, era o que eu levava para cumprir a curta distância. Ia brincando...
Naquele dia, à beira do rio, me sentei e olhei adiante o dourado verão que se remexia em ondinhas na superfície vítrea do rio. Enfiei a pobre minhoca no anzol (tinha a mania de rezar uma Ave Maria, pelas “alma delas”) e mal havia volteado a vara, vi que o cão se agitava perto da margem. “Sai daí bicho besta. Como cê quer que as tilápias venham com esta algazarra!”. Mas o bicho não me deu bola daquela vez. Foi para a beirada e começou a latição. “É paca? É paca, Durango?” perguntei, já prevendo que o cão achara bichos para infernizar. Uma vez achara siriemas no descampado, antes da mata ciliar, e tome correr e perseguir as coitadas até encher os pêlos marrom-vermelhos de carrapichos. Desta vez não. Uma possibilidade aterradora me veio a cabeça. “Sai Durango! Se for jibóia te pega. Sai já!”
Nem paca, nem siriema, nem cobra. Havia algo branquelo e rijo flutuando na beirada das taboas. Os aguapés tão miúdos e unidos tal qual nata verde-oliva. Os juncos todos entrelaçados, misturados com galhos úmidos e apodrecidos de árvore. O mato meio encobrindo a coisa volumosa que começava a se enxamear de moscas. Percebi, de uma lufada só, que cheirava à carniça. Só precisou de uma para aquele cheiro impregnar.
“Vem Durango! Vem.” Do alto de meus treze anos, era difícil dizer, mas eu sabia o que era corpo de gente morta. “Vem Durango, porra!”
Mas o bicho curioso continuava fuçando no rotundo cadáver que vestia camisa branca e só. Não tinha como imaginar direito o que via, mas havia uma bunda meio submersa na água cor de chá (sabe-se lá como perdera as calças). A cara voltada para baixo e os cabelos em névoa, circulando uma ligeira calva, flutuando, cheio de enroscos.
E a frieza terminou ali. Minhas entranhas ficaram líquidas quando dei por mim. O coração reverberando dentro da traquéia. Um morto! Como podia haver uma morto ali? Um morto...
Na minha cabeça, muito jovem ainda, via que aquilo era um morto. Não uma pessoa que havia morrido. Um morto. Algo totalmente alheio a minha realidade de mundo. Algo que não se deve ver, nunca. O meu universo era muito pequeno, confesso, e não havia espaço para coisas inusitadas. Mortos não eram ex-pessoas, eram coisas que pertenciam ao “Algo Mais” que nos cerca. Ao além.
Sentei, ou melhor, tive que sentar para não cair das pernas. Algo me sufocava e me atirava ao chão. Estava abatido e ao mesmo tempo incapaz de me mover e correr dali com a maior força que minhas pernas pudessem ter. Empurrar o chão para longe e me fazer deixar aquele lugar. Quando dei por mim era exatamente isso o que fazia. Corria feito louco. Tinha de contar... Lágrimas escorreram de meus olhos. Parecia que toda distância do mundo não seria o suficiente para me separar daqueles seis ou sete metros de terra inclinada de margem que se materializaram naquele momento. Aquela pequena distância que terminava na água do morto, no rio do morto. Ali era onde ele era o dono e eu fora até sua casa incomodá-lo, sem pedir permissão.
Senti muito medo. Não sei ao certo de quê. Não sei porquê. Vira algo que não deveria ser visto, como se a própria morte tivesse sido presenciada. De certa forma era o que imaginava. Não queria ter nada com aquilo. Não queria ter visto nada. Não queria ter parte com nada... o cheiro dele havia me penetrado o nariz. Como se tivesse comido pelo ar a carne inchada que se cobria de insetos.
Cheguei em casa de vovó muito antes do planejado. Me meti no quarto e me encolhi ente a cabeceira da cama e o guarda-roupa. Cheguei tão cedo que ninguém reparou em mim enquanto entrava. Só lá pelas seis, fim de tarde, quando eu costumava chegar foi que mamãe me achou. Socado no estreito vão onde costumava me meter desde os oito anos quando fazia das minhas. E desandei a chorar convulsivamente. Por mais que ela perguntasse o que tinha acontecido, não consegui responder. Estava impressionado demais. Não queria.
Ela me pôs no colo e me ninou como neném tentando me acalmar e saber o que tinha acontecido. Ouvi o latido de Durango do lado de fora da casa. “Durango! Durango, vem cá!” tinha esquecido o cachorro cutucando o corpo com o focinho. Ele deveria ter ficado lá, tocando na coisa estufada como porco duro, mordiscando o pano da camisa... A idéia me embrulhou o estômago e eu vomitei. Minha mãe se preocupou.
Não deu cinco minutos e ouvimos o ruído de um carro que se aproximava. Era um carro da polícia florestal. Depois apareceu outro, do resgate, e minha avó falou com eles por algum tempo. Depois mamãe foi ter com eles também, e vi quando Januário, o marido de Berta, levou os bombeiros para os lados do brejo. De longe vi uma viatura passando pela ponte do Imirim.
De noite ouvi as conversas na sala. Tinham achado o corpo de um pescador na curva do rio. Viera dois quilômetros rio abaixo se enroscar no sítio de vovó. As pessoas pareciam calmas embora falassem do assunto com reserva. Vi que mamãe olhava para mim e cochichava com vovó e Berta. Pareciam ter adivinhado que eu achara o corpo e entenderam minha reação.
Até nos recolhermos para dormir, minha mãe ficou alisando meus cabelos, sem comentar o episódio. Meus olhos doíam de inchados. Não saía uma palavra de mim. Um médico veio, a pedido de vovó. Deu-me calmantes. Depois Berta, com chá de cidreira e bolachas, já que eu não jantara.
Nunca mais pesquei. Jamais retornei à beirada de um rio. Foi a última vez que passamos as férias no sítio. Pouco depois vovó sofreu um derrame que a entrevou por seis meses e então se foi. Não falei nunca a respeito do ocorrido, com ninguém. Até hoje me pergunto por quê. Para mim, guardo como um momento íntimo, que envolveu um acontecimento macabro demais para um menino que não sabia que no mundo, as pessoas se transformavam em balões de gás arrocheados e cheios de fedor de carniça, a flutuar num rio. O ruído daquela nuvem de moscas varejeiras jamais me saiu da cabeça. Me esqueci até das imagens, mas outras se formaram no lugar, sem que eu quisesse. A cena se repetia por ângulos impossíveis. Via a mim mesmo olhando o cadáver. Via-me chegando perto e cutucando a forma inflada com uma varinha fina... Examinando a rigidez da pele branca desenhada de veias azuis. As moscas me sentando nos braços e me tocando os olhos e a boca. Durango lambendo a pele pegajosa que desgrudava da carne.
Ainda guardo com estranheza minha insondável reação, quando é natural às crianças a curiosidade. Nunca vi o rosto do cadáver, embora ele continue a me assombrar. Um rosto indecifrável, mas um rosto que criei naquele dia em meus pensamentos e, por algum motivo insondável, permaneceu o mesmo, sempre. Como se realmente tivesse sido aquela face o que estivera emborcado no líquido barrento.
Imagino que deveria ter revirado a coisa, visto sua cara, tirá-la do contato com a água que lhe sufocava. Mas aquela bisbilhotice juvenil jamais aconteceu. O toque com aquele corpo não seria suportável. Seria o contato com a morte. Não houve curiosidade como havia durante os filmes ou as promessas de coragem que se tem quando se está dentre outros meninos de mesma idade. Nada. Não fora a hora nem o dia. Nunca foi absolutamente assimilado, embora uma semana depois já estivesse pronto para o resto de minha vida. Na melodia da minha história, uma corda fora tencionada além do ponto provocando um tom fora do acorde. Penso a respeito e imagino, um dia, poder entender o que aconteceu naquela tarde de dezembro, durante minhas férias no sítio de minha avó, quando pela primeira vez tomei contato com a morte.