Depois de mantê-los incógnitos ou de me acostumar a usar os sites alheios, não vejo, enfim, porquê não publicá-los (e se não tinha feito isso até agora foi por pura preguiça).

Sempre que escrevia uma crítica ou crônica, invariavelmente, se não fosse publicado pelos pequenos jornais de minha cidade, ficava guardado no meu HD. São vários textos que tenho e que, por falta de oportunidade ou por não me dispôr a lidar com eles num blog, ficaram guardados até agora. Tomo então a inciativa de dar-lhes luz e publicidade através da internet.

Tenho resenhas de livros também, mas não vejo ainda oportunidade de incluí-las aqui. Continuam espalhadas por sites afora.

Quanto aos contos, são prativamente a razão disso tudo. Depois de algum tempo escrevendo para o Leia Livro, site mantido pela Secretária de Estado da Cultura, de São Paulo, creio já ter amadurecido bastante para tentar manter, por minha própria iniciativa, um blog literário que suporte meus textos curtos.

Textos longos mantenho no meu outro blog, criado exclusivamente para divulgar os livros de minha saga de fantasia A Fome de Íbus, cujo primeiro livro, o Livro do Dentes-de-Sabre, pode ser adquirido pela internet.

Tomo a liberdade de, às vezes, incluir textos que pertençam a terceiros (o que contraria frontalmente a proposta original deste blog. Fazer o quê? Farei isso quando achá-los tão bons e oportunos, que se torne premente sua divulgação ante meus próprios dogmas). Cometerei esta indiscrição alegremente, descaradamente e sem dó, disseminando suas idéias e inteligência. Vou logo pedindo licença e perdão aos autores.

Assim, sem encontrar mais oposição (minha própria), que justique o contrário, nasce o Charranspa (que não significa nada além de ter sido um dos meus apelidos de infância).

Tomo este meu velho pseudônimo como tema e batizo este espaço.

Está feito.

Albarus Andreos

Junho de 2007.

terça-feira, 19 de junho de 2007

O Sunburst

Albarus andreos
fevereiro de 2007.

Raimundo tocava modas. Tinha orgulho de ser violeiro e ganhar o dinheiro do sustento dessa forma quando da entressafra da cana. Era muito melhor que viajar para Minas e passar meses manejando o podão.

Tivera só um filho, seu orgulho. Botara-lhe o nome de Wecslei, nome americano como ele próprio sonhava em ter recebido. Mas seus pais escolheram mesmo o nome que tivera o avô.

Estava sentado na soleira, a noite brilhava com lua sobre o casebre. Seu filho brincava de lado com o cachorro enquanto ele dedilhava o violão surrado. Raimundo parou para olhar a estripulia no meio das palhas de milho donde tirou um pedaço para fazer um cigarrinho. O menino era sempre fechado. Quase nunca brincava. Cuidava do pai como se pai fosse. Vivia amuado quando Raimundo dedilhava as modas que sabia de cor.

Quando Raimundo pensava nisso ficava triste, pois não tinha nada para deixar ao filho caso um dia lhe faltasse. Como havia lhe deixado a esposa, catorze anos antes, assim que parira o menino. Não tinha terras nem carro. Mesmo essa casa era cedida pelo dono da fazendo onde Raimundo cuidava de umas vacas. A única coisa que tinha era a música que, recentemente, até lhe tinha rendido seu primeiro dinheiro não contado, quando junto com o filho do fazendeiro Zé Batista do Encantado, formara dupla e cantara na rádio a cidade. Era rapaz vinte anos mais moço, loiro e com cara de americano, como Raimundo queria que seu filhote tivesse nascido. Mas quanto a isso não podia fazer nada. Wecslei era mulato como o pai e assim seria para sempre.

Ganharam setenta reais cada um, e esse dinheiro Raimundo guardara bem guardado. Era mais dinheiro que ele jamais tivera todo junto, de uma vez só. Planejava gastá-lo na zona, mas Raimundo pensou. O futuro do pequeno merecia mais. Se não tinha mais nada para lhe deixar a não ser o gosto pela música, com setenta reais compraria para ele um violão novo, coisa que ele nunca tivera, já que o seu próprio ele havia roubado de uns crentes, quando tinha quinze anos e era dado a safadezas perigosas.

Levantou-se cedo na sexta-feira e deixou o gado à sorte. O patrão havia viajado, e nada de mal poderia acontecer. Iria a cidade no ônibus que passava entre as oito e oito e meia defronte à sede. A perua da prefeitura apanhou os meninos às sete, levando-os para a escola e Raimundo esperou até as nove, quando apareceu a condução, excepcionalmente atrasada àquele dia. Só então lembrou que trouxera o cachorro junto, como fazia todos sempre. Ato contínuo, assim o fazia e não se dera conta que dessa vez não voltaria ao pasto para tocar os bois.

O Motorista não queria deixar o animal entrar e só quando Raimundo se ofereceu para pagar outra passagem, como se dinheiro não fosse problema, é que o comandante aceitou o novo passageiro. Raimundo não se fez por convencido e botou o bicho sentado num banco, ao seu lado.

O fato o havia irritado. No sacolejar do caminho pensou com desânimo não poder ir ter com as putas como havia planejado inicialmente. Havia lá uma de nome Bruna que se dizia surfista, mas Raimundo não entendia por quê isso era importante. Então veio-lhe o remorso por ter esquecido, por um instante, do futuro de seu filho. Afinal não tinha problema com mulher. Nunca se casara de novo, mas sempre achava uma que lhe desse trela quando tocava nos bares e botecos da região, por isso o dinheiro seria melhor gasto com o violão; o único futuro que podia deixar ao seu filho era a música, resignou-se.

Desceu na rodoviária e foi ao banheiro para se aliviar. O cachorro ficou de fora, sem coragem de entrar. O cheiro era ruim, mas sabia que na cidade não podia fazer as coisas na rua. Um preto se aproximou e lhe encostou uma faca. “Me dá tudo o que tem” disse. Enfiou a mão com violência no bolso do peão e depois se foi. Raimundo perdeu a carteira. A mente todo o tempo no filho que deixara, imaginando se havia chegado sua hora sem que pudesse ter cumprido sua missão para com ele. Mas o dinheiro que ganhara na rádio estava no outro bolso, ainda no mesmo envelope que recebera dias antes. Todas as sete notas novas de dez reais. Raimundo tirou o chapéu e, tremendo, olhou o santinho de Nossa Senhora de Aparecida preso no forro. Agradeceu por não terem lhe levado esse dinheiro também. Em seguida ruborizou-se por estar exibindo à Santa os mictórios da estação. Prometeu em seguida nunca mais mijar num banheiro de rodoviária.

Seguiu na avenida em direção a loja de música. Passou defronte a uma banca de frutas onde viu coisas que jamais vira plantadas na região, como lixia e castanhas de macadâmia. “Frutas americanas” pensou, sem entender por que as pessoas comeriam coisas que não fossem plantadas em sua própria terra. O estômago roncou e lembrou que nada comia desde o jantar da noite anterior. De costume, sempre tomava um caneco de leite tirado da vaca, todas as manhãs mas não hoje. Era dia de comprar o violão para o filhote, orgulhou-se. A música era sua herança.

Escutou então uma freada de carro e um baque forte. Muito tarde percebera que o cachorro nunca andara antes na cidade. Foi esmagado por um caminhão de entulho que saia de uma construção. “Pobre do animal” disse um pedreiro, ao que o motorista deu com a mão dizendo que a culpa era do bicho mesmo.

Raimundo trouxe o vira-latas estuporado para a guia da calçada, perto de um bueiro e ali passou a mão na sua cabeça fiel pela última vez. Nunca mais o veria. Seu queixo tremeu e uma lágrima lhe veio aos olhos. Mas agora tinha que comprar o violão.

Caminhou duas quadras e ouviu as sirenes que vinham de um carro dos bombeiros que avançava devagar segurando o trânsito. Nuca havia visto um bicho daqueles, e sua tristeza o abandonou de imediato. “Campeão das Paraolimpíadas” disse alguém que passava. A pessoa se referia ao rapaz confuso sobre o caminhão, que carregava uma medalha de ouro no pescoço, mas que não tinha nenhum dos dois braços. Ele tentava sorrir e se esforçava por cumprimentar a população que parava e aplaudia. Raimundo aplaudiu também sem entender o porque, já que lhe parecia que essas Paraolimpíadas eram um negócio muito perigoso!

Ao chegar a loja, logo que bateu os olhos na vitrine decidiu que violão queria. O vendedor lhe mostrou um “Sonante tipo Sunburst”, foi como ele o chamou. Raimundo achou perfeito, pois além de bonito toda a vida, tinha também nome americano. “Embrulha para presente”, mandou.

Como o homem não tinha papel de embrulho, Raimundo pôs a caixa de papelão embaixo do braço, com todo o cuidado, e foi a papelaria em frente comprar papel colorido. O presente tinha que ser completo. Para sua surpresa, lhe atendeu a lourinha rechonchuda da zona. “Bruna”? Perguntou. “Maria Eliza” respondeu ela assustada, os olhos arregalados de surpresa. “Aqui é Maria Eliza” completou quase num sussurro.

Não lhe sobrara dinheiro suficiente para pegar um ônibus de volta. Mas poderia comprar algo para comer na feira. Raimundo ficou orgulhoso e as contrariedades lhe pareceram mínimas se comparadas com sua vida sofrida. A esposa teria orgulho dele. Se lembrava dela com saudades. Carolina Usquielli era seu nome de solteira, e Raimundo nunca quis que ela usasse o seu, depois de casados. Achava o próprio sobrenome feio. Ela morrera dois anos depois de chegar de Santa Catarina. Era pobre come ele, filha de um galego que viera tentar a sorte. Só vivera o tempo de parir e uma semana depois foi juntar-se a mãezinha do céu.

Comprou uma garapa e um pastel pois já era hora do almoço e em seguida tomou a estrada de terra, com todo o cuidado para que o suor não estragasse o papel brilhante e vermelho do embrulho. A cor, por mais estranho que pudesse parecer, lembrava a calcinha de Bruna, da última vez que a vira dançar a “Conga” no palco de madeira mal cuidado lá do lupanar.

Já havia ganhado o caminho a um bom par de horas, quando veio-lhe uma repentina caganeira e teve que se retirar da estrada. Passou pelo arame farpado com todo o cuidado para não danificar o Sunburst e aconchegou-se apressado atrás de um cupinzeiro e ali mesmo se aliviou. Mas para se limpar só tinha o lenço branco, único presente da esposa morta. Lá estavam bordadas as duas iniciais dela C. U.

Viu-se na propriedade do turco, Seu Jajá, e que se cortasse caminho pelo bambuzal em direção ao rio, logo chegaria ao arraial. A idéia não era das mais atraentes, visto os problemas que tivera no passado com o fazendeiro, mas após tanto esforço e aborrecimento, um encurtamento de trajetória vinha a calhar. Não podia esperar para ver o rostinho de seu pequeno, quando visse o violão. A música que o pai fazia estaria então oficialmente passada para o filho e ele poderia até morrer em paz.

No arraial deu-se por feliz, já que deixara o sítio do turco sem problemas, mas quando passava defronte à venda — que por capricho do destino pertencia ao mesmo Seu Jajá — avistou o vendeiro e este espremeu os olhos adivinhando quem era ele também. Não o via desde que se mudara do arraial, anos antes. Mas o turco parecia ainda se lembrar da dívida que Raimundo deixara. Escondeu-se meio apressado detrás do violão e foi, sem mais problemas.

Dois quilômetros depois, no meio do areião, encostou uma Veraneio e de dentro dela saltou o vendeiro e dois empregados que lhe deram uma surra violenta com pedaços de pau. Raimundo foi muito machucado. Pouco antes de ir embora, já com os dois empregados dentro do veículo, Jajá se aproximou de sua vítima no chão, enlameada de sangue e terra. “Isso foi por você ter comido minha Luzia, safado!” Raimundo não conseguiu responder. Nunca havia comido a mulher do turco. Não sabia do que ele estava falando. Só saíra meio fugido dali por causa da dívida no bar. Mas Deus tem Seu jeito de fazer justiça. Raimundo apanhara e Jajá batera. Isso estava certo.

Jajá cuspiu nele e entrou no carro. A Veraneio manobrou para retornar por onde viera. Raimundo rolou para uma vala do lado do acostamento para não morrer, mas as duas rodas da direita passaram sobre a caixa. O ruído do Sunburst sendo estraçalhado ficou marcado em sua memória, indelével como a frase que não conseguiu gritar de medo: “Corno filho da puta!”

Era noite alta quando Raimundo chegou. O filhote lhe havia preparado o que comer. Raimundo de olhos embaçados lhe contou que havia lhe comprado um violão, mas que Deus havia decidido que isso não era o melhor para ele, e que por isso o havia tirado. Havia outras coisas reservadas para o menino.

Wecslei disse então que, na verdade, não gostava de música. Odiava quando o pai lhe punha para escutar as modas e que, por isso, não devia ficar tão magoado.

Raimundo estava atônito e tão chocado que decidiu ir dormir. “Pai”, chamou o pirralho logo atrás dele. “O cachorro sumiu”, disse. Raimundo estava de costas, por isso permitiu que as lágrimas rolassem. “Pai”, Raimundo parou de novo. “Ao invés de um violão, por que não me dá um dinheiro para eu ir na zona?”.

Dora

Albarus Andreos
Abril de 2007


Dona Dora adora dourado a doré (com cerveja)

O sol venta indolente sombra adentro onde me deito na rede.

Dona Dora ri deitada vendo os ventos vindo e trazendo calor.

É dia de São João. Dona Dora adora ver João brincar de noite.

Vê se brinca Joãozinho. Vê se de noite vem brincar comigo.

De noite Dora brinca de beijar. João beija.

E Dora adora beijar.

Faz o beiço de beijar Dora, que eu vou.

Então vem João que beijo-te a boca, de noite.

Beijo Dora que beija a lua, que não deixa de beijar meu beiço.

Mas é dia e Dora espera a hora.

João vem de fora mas de noite não falta

Só pensa em cantoria

Só pensa em canta Dora.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Como Gosto de Elis

por Albarus Andreos
em Março de 2007.


Foi muito cansativo esperar o final do interrogatório.

A família de Elis insistia que eu era o responsável pelo seu desaparecimento.

Depois de três dias em que eu a vira pela última vez, era inevitável que a polícia batesse à minha porta. De novo o investigador Burlamaqui, com sua barriga repulsiva saindo pelo gargalo apertado das calças. Seu rosto desleixado de cachorro. Sandálias de couro nos pés que me enojavam, mas que insistentemente olhava, por alguma razão. Aqueles dedos podres com unhas amarelas e quebradiças. Vomitaria neles se não desviasse os olhos, mas sempre voltava a ver, pareciam estar por toda parte, àqueles pés repugnantes! Não sei por quê voltava a olhar.

Ele vinha falar da mina. Não tinha mais nada com ela, pô! Até havia gostado um pouco de Elis. Seu jeito doce de falar, seu olhar infantil que deixava um risinho malicioso no final. Sua conversa inteligente. Elis era linda. Mas não me importava. Não conseguia dar importância a relacionamento algum. Tudo sempre acabava do mesmo jeito. Ela me queria, e isso parecia deixar tudo muito fácil. Dava a impressão de se estar seguindo um roteiro que já conhecia. Não deu para ficar com ela. Com Elis era só uma fome irresistível, como fora antes e sempre. Não podia deixar de saciar. Desde meus quatorze anos. Nem tinha pêlo no saco direito e já me perdia em pensamentos. Deus, que tara era a minha?

Fugi de casa cedo. Fugir é modo de dizer, pois mamãe continuava me mandando grana. Dinheiro não faltava. Queria saber se com as crianças carentes que também nunca viram um pai era assim. Recebia muito mais que precisava, na verdade. Comprava roupas, carro, maconha... Não tinha falta de nada. Fumava sempre sozinho, com minha guitarra, dedilhando Cold Play, Evanescence... Gostava de rock de velho também. Não sabia os nomes, mas ficava li, metodicamente dedilhando até sair. Elis era como eu. Elis odiava sua casa também.

Elis... Não tô nem aí!

Não pensem que não ligava, realmente! Nem conseguia mais ficar no mesmo lugar depois de acabar com tudo. Mudava. São Paulo é bom por isso. Não que eu conheça outro lugar. Mas acho que é bom. Me condoia por dentro. Me sentia o pior dos caras. Eu amei cada uma delas, mas não deu! Fazer o que? Tinha que continuar. Viver essa vida do jeito que sei. Não sei muito. Escola particular e tal, mas sempre fui pouco atento. Não to nem aí...

Depois, sempre tinha outra para substituir a paixão avassaladora que também ia fácil. Ninguém é de ninguém, dizia mamãe. Eu que me virasse. E eu me virava.

O Gol do polícia foi embora. No volante ficava outro investigador. Sempre estava lá. Será que o Burlamaqui tinha medo de mim? Babaca! Três horas e meia de interrogatório dito “não oficial” foram o suficiente para que o investigador saísse do meu pé por aquele dia. Dessa vez ele gritara que sabia que algo estava errado. Disse que “estava de olho em mim” e estas coisas de policial que não sabe o que fazer. Não havia sequer um corpo. Uau! Me espantei.

Elis morta? Ela é flor! Ela é passarinho. Menina cheia de sol! Só saiu fora e eu ajudei. Todas a minas odiavam o lugar onde moravam. Sofriam... Se eu posso ajudar eu ajudo. Sei como é sofrer em casa.

As vezes fico tão cheio de angústia... Uma vez que comia, perdia a graça. Sou um maldito volúvel e imprestável. Sou superficial quando me imagino intenso. Aí é que vejo como sou um monstro. Assim fora com a Didi, com a Lu... Quem sabe se um dia isso mudaria... Mas depois da primeira vez, me excitou muito. Era sempre assim... Não! Nem sempre fora assim. Na verdade, antes delas havia tido o Marcinho...

Acho que os meninos de rua não tem o mesmo problema não. Eles não tem pais, mas os pais deles todos estão perto, nas comunidades em que vivem. Quase ninguém tem pai... Marcinho não tinha também. Conheci no farol. Roubou minha bolsa quando voltava da rave. Tava com tanto sono que não deu pra ver de onde ele vinha nem para onde ia. Tava muito chapado!

Mas reconheci o menino no dia seguinte, quando passei de novo no cruzamento. Ela tava lá, pedindo esmola e roubando, como sempre. Via aqueles moleques sempre ali. Diversas vezes. Um dia vi dois PMs batendo neles, desci do carro para parar com aquilo. Os meninos fugiram e os PMs me pegaram no lugar. Não me prenderam, quando viram o carro importado de onde eu saíra. Temeram alguma coisa, sei lá. Batem em pobre, em rico imaginam que pode dar problema. Saíram fora depois de me quebrarem a cara, e só.

Dias depois o moleque me reconheceu. Marcinho veio falar comigo quando passava de novo no cruzamento. Fomos lanchar. Depois fomos para o Motel. Então descobri o que eu gostava de fazer. Descobri que gostava era daquilo. Me senti sujo depois. Quase pus fim a minha vida. Mas por que deveria fazer isso? Se nunca havia achado motivos antes, com toda a desventura sórdida que havia sido minha existência antes daquilo?

Nunca mais o vi como antes. Levei-o para meu apê no Paraíso, onde morava na época e pela primeira vez experimentei da carne. Contudo, depois que maculava o lugar não conseguia mais ficar. Tinha que mudar. Aquela coisa gritava na minha cabeça. Ia embora para não me lembrar mais do amor que ali extravasara meu peito e minha alma. Tinha que procurar outro canto onde pudesse construir outro santuário de sossego, lugar meu. Didi comi na Mooca, a Lu em Perdizes, a Elis... A Elis aqui mesmo na periferia, onde todo mundo é mais aberto. Mais amigo. Mas não vou ficar mais por aqui, não. Acho que vou embora do Brasil. Tem o apê de Miami que nunca fui. Fosse onde fosse meu santuário, quando mudava, tudo mudava. Esquecia o pesar do abandono dos outros lugares. Esquecia as coisas mortas. Tudo cheirava novo. Tudo de mal ficava para trás. Tudo dava sempre certo, onde eu vivia de novo.

Aquele maldito investigador estava chegando perto, por mais improvável que fosse. Disse que haviam me visto no bar, o que pouco importava, na verdade. Ele deitava quem quer que estranhasse. Não tinha para ele não! Tinha medo daquele cara. E a família de Elis queria que ele me pegasse. Não gostavam do jeito como eu dava força para ela contra as merdas que ela ouvia em casa. Burlamaqui não era o nome dele. Era branco enquanto todo mundo na comunidade era preto, por isso o nome da atriz. Era um dos poucos polícias que podia andar por aquelas ruas. Fazia parte do “grupo” que livrara o bairro dos traficantes. Cobrava uma graninha dos lojistas e dos botecos, para manter a área limpa, com seu “pessoal”. Ele matava, mesmo.

Mamãe matou papai para ficar com a herança. Ela nunca soube que vi, mas eu vi. Ela o matou quando eu era muito pequeno. Colocou papai no porta-malas e ele nunca mais voltou. Eu vi. Mas não vou pensar nisso de novo. Não vou. Não sei por quê, quando começo a pensar não consigo parar. Mas vou parar. Não penso. Não penso. Não vou pensar... Mas penso. Burlamaqui sabe. Algo me diz que sabe. Ele já sentiu o gosto de matar e sabe como é. Ele olha pra mim e vê.

Tenho que mudar de novo. Depois do almoço vou...

Era meio dia e estava com fome. Fui até o freezer, Elis olhava para mim. Queria comer fígado hoje. Tirei então, pus no microondas para descongelar. Elis era linda! Passarinho que voa e não volta mais. Foi ver o sol de perto. Depois do beep, retirei a carne, temperei com páprica e manjerona. Uma pitadinha de sal e um galhinho de cheiro-verde para decorar. Gosto cru mesmo. Não cru, de verdade, que depois de descongelado no microondas, saído do freezer, perde um pouco do sabor.


Marcinho sim, comi cru!