Depois de mantê-los incógnitos ou de me acostumar a usar os sites alheios, não vejo, enfim, porquê não publicá-los (e se não tinha feito isso até agora foi por pura preguiça).

Sempre que escrevia uma crítica ou crônica, invariavelmente, se não fosse publicado pelos pequenos jornais de minha cidade, ficava guardado no meu HD. São vários textos que tenho e que, por falta de oportunidade ou por não me dispôr a lidar com eles num blog, ficaram guardados até agora. Tomo então a inciativa de dar-lhes luz e publicidade através da internet.

Tenho resenhas de livros também, mas não vejo ainda oportunidade de incluí-las aqui. Continuam espalhadas por sites afora.

Quanto aos contos, são prativamente a razão disso tudo. Depois de algum tempo escrevendo para o Leia Livro, site mantido pela Secretária de Estado da Cultura, de São Paulo, creio já ter amadurecido bastante para tentar manter, por minha própria iniciativa, um blog literário que suporte meus textos curtos.

Textos longos mantenho no meu outro blog, criado exclusivamente para divulgar os livros de minha saga de fantasia A Fome de Íbus, cujo primeiro livro, o Livro do Dentes-de-Sabre, pode ser adquirido pela internet.

Tomo a liberdade de, às vezes, incluir textos que pertençam a terceiros (o que contraria frontalmente a proposta original deste blog. Fazer o quê? Farei isso quando achá-los tão bons e oportunos, que se torne premente sua divulgação ante meus próprios dogmas). Cometerei esta indiscrição alegremente, descaradamente e sem dó, disseminando suas idéias e inteligência. Vou logo pedindo licença e perdão aos autores.

Assim, sem encontrar mais oposição (minha própria), que justique o contrário, nasce o Charranspa (que não significa nada além de ter sido um dos meus apelidos de infância).

Tomo este meu velho pseudônimo como tema e batizo este espaço.

Está feito.

Albarus Andreos

Junho de 2007.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A Criatura

Albarus Andreos
24/02/2007


O sol já vai nascer. Restam-me poucos minutos antes que minha criatura venha me buscar. Fico aqui no seu aguardo, já sabendo o que me espera. Nada pode descrever minha aflição. Meu desespero é pelos sofrimentos a que serei submetido. A razão será tirada de dentro de meu crânio a fórceps.

Nem posso contar as madrugadas em que acorri para atender suas súplicas... Não! Não posso mais uma vez tomar partido dela. Não vou esquecer o motivo de estar escrevendo-lhe estas linhas, meu infeliz leitor. Não de novo. Não posso deixar-me convencer que é inútil minha luta, meu sofrimento. O mundo tem de saber o que fiz. É algo a que dei vida, e que está a pouca distância daqui, dentro desta casa, sob este teto de onde lhe escrevo, meu amigo. Perdoe-me. Se algum dia ler esta carta, é porque assim o destino permitiu, apiedando-se de minha miséria.

Estes minutos, antes de sua chegada são os mais intensos. Só queria poder dormir um pouco mais, só isso. Mas sei que logo escutarei seus passos leves vindo pelo corredor ainda escuro e seu vulto assomará na porta de meus aposentos. Silenciosa, sem estardalhaço como seria de esperar. Estarei de olhos fechados mas verei tudo. Queria poder me enganar que não vai acontecer de novo, mas no fundo sei que assim será, e isso só faz aumentar a angústia. Só queria poder dormir mais um pouco. Deixar-me abandonar nos braços de Morfeu e rezar para que os pesadelos não me alcançassem.

Às vezes fico aterrorizado, pois pressinto nitidamente que ela sabe o que penso. Ela lê meus pensamentos e usa isso para me massacrar. Minha cabeça parece querer estourar com uma dor que nasce na nuca e penetra obliquamente nos miolos até as têmporas. Há um aumento de pressão no meu peito. Minha agonia faz com que doa como em carne viva. Meu coração fibrila em descompasso, só aumentado a sensação de carne rasgando. Há aquele inchaço que se forma no pescoço devido à raiva contida a muito custo, querendo escapar por entre dedos frágeis que já não se lembram porquê conter o jorro da bile. Raiva que não pode ser libertada, porque eu sou o dono da culpa. Eu a criei.

Ela não deve perceber esta raiva. Não deve! Mas sei que percebe. Tenho que bloqueá-la, mas é difícil. Faz as pontadas no meu peito aumentarem. A criatura sabe e minha aflição redobra. Meu tormento se multiplicará por isso. Tenho que resistir pois ela sabe exatamente o que fazer para me machucar. Ela me conhece. A criação conhece tão bem ou melhor seu criador, imagem que é dele próprio, mas com uma ligação muito mais profunda, porque ao criador ainda houve um tempo anterior, quando ela não existia, em que era livre da maldição. Mas a coisa, ao contrário deste, só existe pela mão do criador, já que feita por ele. À criatura, o criador veio desde o início e sempre fez parte de seu universo. Adapta-se a ele desde seu surgimento, opondo-se cruelmente ao inepto que pateticamente se esforça por ser capaz de dominá-la.

Ela chega silenciosamente. A criatura sabe que eu a percebo ali parada e depois se movendo de novo. Sabe que a reconheço. Como poderia ser diferente. Eu a fiz! Cria minha, meu algoz e torturador, nesses dias em que as manhãs chegam ainda escuras com o prenúncio de sua vinda. Não seria desmesurado dizer que a mão do artífice prepara contra ele a maior das punições quando sua obra toma vida, como uma Galatéia às avessas a um Pigmalião desenganado.

Ouço a sombra chegando. Não deveria poder, mas sei que ela se aproxima. Oh, Deus! Finjo dormir como sempre. Meus nervos em frangalhos. Só queria dormir! Mas minha criatura chega, parando ao meu lado. Atraída por mim como sempre. Minha presença silenciosa é um chamariz para sua inocência primitiva. Agonizo de terror, mas então, mais uma vez como em tantas outras nestes três últimos anos em que a pus no mundo, sinto seu toque leve e frio no meu rosto. Ela fala com um sopro em meu ouvido. Um chamado que ela aprendeu com perfeição na sua curta existência. Burilada para incutir todo o pavor que sua condição pode conceber. Sem opção, abro meus olhos que imediatamente fitam os seus, pequenos, brilhantes e cinzentos, sobre sua estatura nanica. Como sempre, segurando uma fraldinha de pano contra o peito, ela diz: “Já ta claro, papai. Vamos assistir Discovery Kids!” E me puxa para a sala.

Deus... só queria poder dormir um pouco mais. É sábado e mal passa das sete da manhã.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

O Batfone

Albarus Andreos
Abril de 2007.

Meu filho veio até mim com um gibi de minha coleção que eu tantas vezes proibi que ele sequer chegasse perto.

— Pai, me explica isso aqui...

Tratava-se de um quadrinho em que o batfone tocava em primeiro plano, tendo como fundo a chefatura de polícia de Ghotan City. Não havia personagens ou balões. Só isso mesmo.

Essa descrição, que não podia ser mais elucidativa, contudo, não agradou ao menino.

— Não pai. Por que tem isso aqui?

— Isso o quê?

— Trim, trim... Por que trim, trim?

Sim, expliquei o porquê. Mas o cerne daquela questão me deixou atarantado! Estamos numa época em que o telefone não faz mais trim, trim em lugar nenhum, de tal forma que um menino de oito anos não tem idéia que trim, trim é o som que ele fazia antigamente. Aqueles velhos telefones de baquelite pretos, com fio em espiral ligando o gancho (que não era móvel) à base.

Hoje, os telefone fazem mmmm, mmmm; Ou bzmmm, bzmmm; isso para ficar nos telefones fixos, pois aos celulares guardo especial espanto! Um sobrinho tem um que quando toca (toca? Sim, hoje telefone realmente toca música... mas nem sempre.) ele fala, num tom crescente cada vez mais irritado: “Ô maluco! Atende aí! Não vai atender não? Atende aí...”. E tem um amigo meu, já com quarenta e poucos, que acha que ainda é adolescente. No dele, uma voz feminina e sensual faz: “Hmm, meu gostoso! Gostoooooso! Atende vai... Deixa essa mulher horrível aí e me pega... Vai... Como só você sabe fazer...Tô com saudades fofucho...”. Ele gosta de atender ao telefone especialmente quando está acompanhado da esposa. Já o de um amigo de minha filha (não posso dizer que estão namorando, porque não sei se o que fazem pode ser chamado de namoro...), toca um sonoro “som flatulento” de muitos e muitos segundos. Entenda: o “maluco” vem à minha casa, “dá uns pega” na “pirainha” e na hora da lasanha o aparelho dele peida! Juro que se um dia sentir cheiro ponho ele pra fora!

Telefone não fala só quando deveria “tocar”, ele fala também quando você disca (disca? Há quanto tempo telefone não tem mais disco?) um número e a “voz padrão” diz: “Esse número não existe...” mesmo que seja o número de sua própria casa. Telefone fala quando você quer reclamar de um produto ou sobre a péssima imagem da novíssima TV via-satélite que nunca pega: “disque 1 para reclamar, disque 2 para berrar, disque 3 para xingar, disque 4 para chorar...” e por aí vai.

Telefones tocam, sendo justo com a verdade, mas tocam Britney Spears, NXZero, Nati Ruts... Minha filha colocou Destroyer Rock City, da minha coleção de vinil no meu celular (não me pergunte como). Achou que com isso iria deixá-la acampar com seu “gasoso” namoradinho em Parati. Fiz com que tirasse, não sem algum prejuízo, já que só soube da alteração quando recebi uma ligação no meio de uma reunião com a diretoria da empresa, onde eu esqueci de desligar o celular (por que não me deu um tiro logo de uma vez?).

No fundo sinto-me velho, reclamão e inadequado... Quem poderia imaginar que, na década de setenta, o simples tocar de um telefone em casa pudesse provocar risadas, divertimento ou alegria (alegria... bem, isso provocava, já que quem tinha dinheiro e paciência para esperar meses e meses para que seu telefone fosse instalado pela TELESP, ficava muito feliz ao ouvi-lo tocar!).

A TELESP nem existe mais... Foi como a Light (e os bondes da Light para meu pai) e isso só nos mostra que o mundo gira mais rápido atualmente. Dá zilhões de voltas no HD da história que tem espaço para infinitos gigabytes. No meu tempo, o mundo ainda era 286, a gente gravada a FM em fitas K-7 e assistia Speed Racer de tardezinha.

Para encurtar a conversa, depois de saber que meu filho via diariamente um desenho animado em que o personagem principal era a “Morte”, alcunhada pelo singelo apelido de “Puro-Osso”, e que tinha, por alguma “maldição”, de cuidar de duas crianças chamadas Billy e Mandy, e onde frases como: “vou bater um barro” eram freqüentes, fui vencido. Decidi deixá-lo pegar minhas coleções de Conan, Batman, Homem Aranha e Incrível Hulk, dentre outras (deixei, contudo, Heróis da TV e Capitão América escondidas, para futuras barganhas...).

Nunca pensei que um dia diria isso, mas tenho saudades do tempo em que telefone não tocava.