Depois de mantê-los incógnitos ou de me acostumar a usar os sites alheios, não vejo, enfim, porquê não publicá-los (e se não tinha feito isso até agora foi por pura preguiça).

Sempre que escrevia uma crítica ou crônica, invariavelmente, se não fosse publicado pelos pequenos jornais de minha cidade, ficava guardado no meu HD. São vários textos que tenho e que, por falta de oportunidade ou por não me dispôr a lidar com eles num blog, ficaram guardados até agora. Tomo então a inciativa de dar-lhes luz e publicidade através da internet.

Tenho resenhas de livros também, mas não vejo ainda oportunidade de incluí-las aqui. Continuam espalhadas por sites afora.

Quanto aos contos, são prativamente a razão disso tudo. Depois de algum tempo escrevendo para o Leia Livro, site mantido pela Secretária de Estado da Cultura, de São Paulo, creio já ter amadurecido bastante para tentar manter, por minha própria iniciativa, um blog literário que suporte meus textos curtos.

Textos longos mantenho no meu outro blog, criado exclusivamente para divulgar os livros de minha saga de fantasia A Fome de Íbus, cujo primeiro livro, o Livro do Dentes-de-Sabre, pode ser adquirido pela internet.

Tomo a liberdade de, às vezes, incluir textos que pertençam a terceiros (o que contraria frontalmente a proposta original deste blog. Fazer o quê? Farei isso quando achá-los tão bons e oportunos, que se torne premente sua divulgação ante meus próprios dogmas). Cometerei esta indiscrição alegremente, descaradamente e sem dó, disseminando suas idéias e inteligência. Vou logo pedindo licença e perdão aos autores.

Assim, sem encontrar mais oposição (minha própria), que justique o contrário, nasce o Charranspa (que não significa nada além de ter sido um dos meus apelidos de infância).

Tomo este meu velho pseudônimo como tema e batizo este espaço.

Está feito.

Albarus Andreos

Junho de 2007.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Vingança

Por Albarus Andreos
Em 17/ 04/ 2007, para o Leia Livro.

“Afinal, quem disse que essa coisa de estratégia global é para os políticos, militares, terroristas e estrategistas? Antes de mais nada, diz respeito a nós, os alvos.”
Roberto Causo – escritor

O que vou contar é uma história de vingança. De amor e ódio. História de gente sofrida como eu e você. Também uma história de sofrimento e de ruindade. Não leia se tiver mais amor que ódio no coração, pois aqui ensino que vale a pena tirar com a mão o que a mão de Deus perpetrou e, ao mesmo tempo, fazer da sua, a mão Dele.

Era uma tarde se segunda-feia, início de outono. Janaina acabara de voltar do quiosque onde trabalhava, em frente a represa de Sarapi. Passava os dias lá, de segunda à domingo, para ganhar quatrocentos reais, além de vales-transporte. Fazia sucos, limpava mesinhas, agüentava cantadas.

Janaina pensava em Ana Flora, sua filhinha que criava só. Ela se deixava humilhar para conseguir continuar empregada e poder cuidar dela. Largava o serviço sempre às cinco e ia para a creche buscar a pequena. Fazia isso como uma tarefa que iluminava seu dia, embora tão cansada que nem era capaz de imaginar outra forma de se sentir gente. Ana Flora era seu alento e preocupação ao mesmo tempo. Seu olhar dizia para a mãe que ela existia e que respirava. Era gente pobre, mas era gente amada.

Porém, naquele dia, tudo se mostrara diferente. Estava sendo seguida. Vira o cara subindo no Escort. Olhou muitas vezes pela janela do ônibus e viu-o por entre a poeira da estradinha. Vinha cobrar dela o tapa na cara. O tapa que fora pouco por ele ter afundado o dedo médio no seu traseiro, sob sua saia... Thomás de Aquino retirara o atrevido da cantina com uma gravata, e o deitara na grama com porradas. Era contudo, homem gentil, quase sempre. Tomava conta das moças durante o trabalho. A sutileza do assédio sexual para com as garçonetes não era regra. Todos os dias havia grosserias, risinhos e convites.

Em parte isso era culpa de Aletério, o dono. Ele contratava as meninas mais bonitas do bairro para trabalhar na represa onde controlava o quiosque e a venda nas mesinhas e cadeiras de praia que alugava. Ele vendia pó também, e usava o quiosque para atrair seus amigos e os filhinhos de papai. Os riquinhos, as moças tiravam de letra, mas Thomás de Aquino desta vez batera feio num membro da Sacolinha, como era conhecida a polícia do condomínio de Alto Salvador. Sacolinha porque eles passavam a “sacolinha” cobrando proteção dos comerciantes. O que apanhara era um cara mau que tinha sido afastado da polícia do exército por traficar dentro do quartel do Décimo Primeiro de Artilharia Blindada. Era quase surdo, diziam, e vingativo. Era grande o cara, mas Thomás dava dois dele.

Não ficou contente de ser judiado na frente dos companheiros de farra. O PE não encarava o Thomás de quem já havia apanhado outras vezes. Mas eu era mais fácil.

Desci no ponto da rua do Francês, em frente à casa de umbanda de Filomena. Ali dei uma corridinha. Já eram seis e meia da tarde e o ônibus tinha demorado mais que de costume devido a desvio na altura da ponte que vinha pra cidade. A irmã sabia que eu nunca deixava de pegar a neném e por isso ela iria me aguardar. Não era a primeira vez que me atrasava também. “Pobre só tem hora é pra morrer”, dizia meu paizinho. A irmã sabe.

A Escadaria da Penha era um beco escuro, já no início de noite, dentre paredes de tijolos sem reboco. Fios e “gatos” cruzavam por cima, por todo o trajeto. Antigamente tinha um encanamento de manilhas por onde escorria o esgoto miúdo do bairro alto para o canal lá em baixo, mas alguém roubara as manilhas e agora a sujeira vinha a céu aberto mesmo, comendo a terra ao lado da escadaria que ligava a parte baixa ao Largo das Enfermeiras. E foi na subida da escadaria que eu percebi o Escort parado no final, lá na rua. Não deu para pensar mais nada. Ali o PE me atacou. Quebrou meu nariz no primeiro soco. Depois esfregou meu rosto nos tijolos, até o osso. Gostaria de lembrar o que ele dizia, mas não lembro. Me xingou muito. Quebrou minhas duas pernas pisando nelas, sobre os vãos dos degraus e me estuprou. Não lembro se foi nessa ordem, não importa. Mas escutei uma coisa: “vou te matar!”. Não esqueço disso. Ele disse e ficou. Ficou como a frase que Thomás de Aquino disse quando tirou a mão grande dele da minha bunda, no bar. Thomás disse: “Respeita a moça! Tenha respeito, safado!”.

Queria acreditar que ele fez o que fez porque era o que devia fazer, como segurança do quiosque, mas se fosse assim teria só chutado o cara e posto ele pra correr. Não! Thomás ficou zangado de verdade. E não foi a primeira vez que meu “anjo-da-guarda” me livrou de boas. Ele um dia até me emprestou uma grana. Sem que precisasse pedir, porque pedir eu não tinha coragem mesmo. Deu sem cobrar jamais o dinheiro de volta, mas eu devolvi, é claro. Duzentos reais que me faltaram num mês que tive de ajudar na casa de minha tia em Minas. Dinheiro que tive de mandar porque ela estava doente. Eu sabia que Thomás era mais pé-rapado que eu, por isso jamais teria coragem de pedir. Mas ele trouxe no dia seguinte. Saiu do quiosque antes de mim e veio dar para irmã, na creche, porque sabia que eu precisava. Se não fosse eu apertar a velhinha ela não ia me dizer quem foi. Que coração, tinha o Thomás...

Nove meses se passaram até que eu acordasse de novo. Minha tia Eunice tinha vindo de Minas e levado Ana Flora para ficar com ela enquanto eu convalescia. Tinha cuidado da neném durante todo esse tempo, só com sua pensão mínima. Jamais vou poder agradecer a ela por isso. Mas não tinha tanta gratidão no peito, não. Não tinha muito medo também. Tinha é ódio.

O choro de minha filha, quando me viu, mostrava que algo tinha mudado, e mudou. Não me reconhecia devido às cicatrizes e inchaços que ainda persistiam. Agora eu era um monstro, cheio de dor e agonia por ver nos olhos de minha filha uma desconhecida. Não tinha mais meu rosto. Não tinha sequer um, na verdade. E demorou para eu andar de novo. Uma perna estava cinco centímetros mais curta que a outra. Passei a mancar, o que superava as expectativas dos médicos do hospital público, contudo. Achavam que eu ia ter de usar aparelho para andar por muito tempo ainda, ou pior. Pedi que titia levasse Aninha de volta para Minas, que continuasse cuidando dela.

Passaram-se mais uns meses. Era dia de São Judas Padroeiro. A quermesse na igreja estava animada e eu trabalhava numa das barraquinhas. Desde que perdera o emprego no quiosque vivia de favor dos outros. Não era mais bonita e nem sabia mais atender pessoas, com o coração seco que passei a ter. Ajudava na recepção da igreja e a irmã me garantiu um salário mínimo para me manter. Ela perguntava de Ana Flora, mas não a via há muito tempo já. Sentia até saudades, mas no meu peito, como disse, só tinha espaço para a raiva. Eu mudara muito. Minha desforra viria um dia!

Numa ida a casinha passei perto do estacionamento, onde as famílias boas deixavam os carros caros e reluzentes aos cuidados de um menino que cuidada deles. Tínhamos estudado juntos, mas não lembrava seu nome. Sempre deu em cima de mim, como todo mundo. Mas isso ficara no passado. O destino quis que eu o ouvisse falando no celular. Não percebeu que eu vinha. Foi quando, em dez segundos, planejei minha vingança.

O menino estava passando informações de uma caminhonete bem na frente. Cor, modelo, novinha... parece que já havia cliente para ela. Em vinte minutos alguém viria para levá-la.

Não hesitei. Dali, fui para o orelhão e passei para a polícia do condomínio a ficha toda. O roubo iria ocorrer em vinte minutos mais ou menos. Dava para pegar no flagrante. Daí foi que disse a frase que mudou minha vida. “É coisa de gente de fora. Foi... o Marçal Índio quem mandou avisar.”

Marçal era o prefeito. Era também quem dominava o roubo de carros e carga por toda região e, segundo já ouvira no quiosque, tinha ligações até com outros estados. Garçonete ouve muito porque é invisível. Ninguém dá nada por moça que trabalha em bar. Ninguém liga, não dão atenção nenhuma. É bicho... escuta mas não fala.

Há vinte e poucos anos, o Índio se revezava na prefeitura com o filho e o genro, mas este último, ele mandara matar por ter tentado voar com as próprias asas. Era o que ouvira, uma vez...

PE cairia na história porque era pago pelo Índio para fazer vista grossa aos negócios ilegais dele. Muito bem pago, diziam. Ele certamente atenderia a um pedido do prefeito. Pedido do Índio era ordem. Desligou o telefone dizendo obrigado, o desgraçado... Quase disse “sim senhora”. Aquilo tudo fazia muito sentido! Ele caíra como um patinho. Não se lembrava mais de mim. Até minha voz era diferente devido a paralisia facial que adquirira. Gostaria que ele tivesse, pelo menos, desconfiado de quem falava com ele, que soubesse quem havia armado tudo. Mas era melhor assim.

Dei uns dez minutos... Tudo estava pronto na minha cabeça. Viera do nada, mas sabia exatamente o que fazer e não era bonito. Não ligava! Não tinha escrúpulos. Janaina morrera com um tiro, naquela vez. Agora era outra pessoa quem planejava a vingança. Era dia de São Judas, e tudo daria certo.

Dei um jeito de achar o menino que trabalhava de olheiro para o Índio. Ele não me reconheceu, como todo mundo. Costumava me cantar quando eu trabalhava no quiosque, tínhamos estudado juntos... tive que contar isso pra ele saber quem eu costumava ser, quando ainda tinha um rosto. Ele franziu o cenho horrorizado. Depois riu de mim. Tinha nojo. Mas eu sabia me entender com gente assim. Principalmente se envolvesse sexo de graça, no escurinho. Disse para ele que continuava a mesma, do pescoço para baixo (mentira, já que precisava andar na ponta do pé esquerdo, para não mancar). Ficara o tesão reprimido por mim embora o que tivesse era as sobras de um prato farto de outros tempos. E daí? Gente como ele, que eu nem lembrava o nome, era muito pouco exigente. Me passou a mão... Aceitou.

Fomos para o estacionamento, escolhi o lugar estrategicamente, atrás do sansão do campo, sobre um barranco baixo, no escuro. Mal tinha começado o boquete quando ele percebeu que, de onde estávamos, dava para ver o roubo que ocorreria dentro de minutos. Percebi que ele esticou o pescoço, sua atenção ficou focada em algo que se desenrolava ali embaixo, no estacionamento. Ele me agarrou pelos cabelos e fez sinal para que eu não desse um pio.

Vimos dois guardas atrás de um carro, espreitando. Ele tentou apanhar o celular e chamar alguém, mas imediatamente apareceu o ladrãozinho, que checou para ver se estava tudo limpo antes de meter uma ferramenta qualquer na porta da pick-up e desligar o alarme. Não tinha ainda entrado direito no carro, de porta aberta, quando saltaram o PE e o outro guarda apontando armas para ele. Deram voz de prisão, suponho.

O menino, comigo, tremia como vara verde. As calças arriadas até os pés sob pernas magricelas, quase sem pêlos. Se abaixou e se encolheu mais. PE e o outro, aproveitando-se do ambiente ermo, agora cobriam de cacetete o ladrão. Bateram muito nele. PE gostava de bater. Ouvi ruído do braço sendo quebrado. Me fez vomitar. Senti aquela dor, de novo. O ladrão ficara inconsciente. Tudo tinha dado conforme meu atribulado plano. O menino iria contar que fora PE e outro guarda quem haviam ferido e impedido o roubo. Marçal Índio não ia deixar barato. As pernas do polícia seriam quebradas também, ou coisa do tipo. Eu ri por dentro. Um riso quente e sem substância, coberto por sofrimento, mas um riso profundamente satisfeito com o que aconteceria no dia seguinte.

Foi então que as coisas foram além. É como Deus te mostra que ainda está no controle. O outro guarda foi à viatura, atrás de um barracão pegar algemas ou passar um rádio à polícia militar, falando da ocorrência, mas PE era psicopata. Retirou uma lâmina do bolso que rebrilhou na pouca iluminação que vinha da quermesse além, e enfiou-a no pescoço do ladrãozinho. Lágrimas saltaram de meus olhos. O menino, aos meus pés, não conseguiu segurar o conteúdo das próprias tripas... O outro guarda começou a gesticular e discutir abertamente. Mas quem mandava na dupla era PE, que colocou o dedo na cara do colega e falou coisas que imagino vagamente o teor, já que não ouvia quase nada. Depois olharam em redor, mais uma vez. Não me viam. Não havia ninguém. Imaginaram que ninguém vira o ocorrido. A viatura da Sacolinha se foi rapidamente, levantando poeira. O corpo ficara para trás para alguém achar. O menino comigo, tampava a boca com a mão, tão fortemente que a cara toda estava adormecida. Seus olhos estavam arregalados. Seu rosto descorado de terror.

“Vou... contar para o Marçal!”.

Estava feito. Lembrei então de Thomás... lembrei do dia...

Ele veio quando PE tinha acabado de gozar. Veio de algum lugar que não vi, provavelmente subindo a escadaria, porque não teve tempo de chegar, gritando, louco da vida. Acho que Thomás me amava, mas nunca disse nada. Havia me seguido, como eu às vezes percebia que ele fazia. Havia seguido o Escort do PE, desconfiado. Pulou para cima do maluco e eu só ouvi os barulhos de estourar os tímpanos. Tamanho não importa contra um trinta e oito. Levou cinco tiros. Teria morrido se Thomás não tivesse aparecido e ficado com a maior parte das balas. PE se conteve e deixou o último cartucho para mim. Tenho cabeça dura, como papai dizia. Só isso explica porque a bala resvalou no osso ao invés de estourar o crânio. Isso e o fato de que Deus queria que eu me vingasse; desse o troco pelo que foi feito a mim e a meu amigo.

Ao contrário dele, não morri.

No dia seguinte o jornal dava conhecimento de corpo encontrado degolado na quermesse da matriz de São Judas; mas era outra notícia, cuja foto estampava a edição, que me interessou mais: “Viatura policial incinerada em canavial”.

“...dois corpos foram encontrados carbonizados na estradinha da usina. Dentro da viatura incendiada, os dois policiais estavam algemados ao volante do veículo, sem marca de disparos, sinal de que provavelmente teriam sido queimados vivos...”

Decidi partir. Já não tinha mais nada o que fazer depois da vingança alcançada e mudei para Minas. Chegando, Aninha me reconheceu. Como se durante o período, entre meu acidente e aquele em que a via de novo, eu tivesse sido realmente outra pessoa, e voltasse a ser eu mesma, agora. Me chamou de mamãe. Nunca mais ligou para meu rosto ou para meu novo jeito de andar. Pediu só que eu nunca mais a deixasse, o que prometi com sinceridade. Voltei a ser Janaina então e, por tudo que é essencial e sagrado, procurei esquecer o que tinha ocorrido. Contudo, antes de dormir, todas as noites rezo junto de Ana Flora, e peço a Thomás de Aquino, que está no céu, que proteja minha filhinha. E ela, de mãozinhas juntas, insere: “Anjo-da-Guarda, me guarda”.

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