Depois de mantê-los incógnitos ou de me acostumar a usar os sites alheios, não vejo, enfim, porquê não publicá-los (e se não tinha feito isso até agora foi por pura preguiça).

Sempre que escrevia uma crítica ou crônica, invariavelmente, se não fosse publicado pelos pequenos jornais de minha cidade, ficava guardado no meu HD. São vários textos que tenho e que, por falta de oportunidade ou por não me dispôr a lidar com eles num blog, ficaram guardados até agora. Tomo então a inciativa de dar-lhes luz e publicidade através da internet.

Tenho resenhas de livros também, mas não vejo ainda oportunidade de incluí-las aqui. Continuam espalhadas por sites afora.

Quanto aos contos, são prativamente a razão disso tudo. Depois de algum tempo escrevendo para o Leia Livro, site mantido pela Secretária de Estado da Cultura, de São Paulo, creio já ter amadurecido bastante para tentar manter, por minha própria iniciativa, um blog literário que suporte meus textos curtos.

Textos longos mantenho no meu outro blog, criado exclusivamente para divulgar os livros de minha saga de fantasia A Fome de Íbus, cujo primeiro livro, o Livro do Dentes-de-Sabre, pode ser adquirido pela internet.

Tomo a liberdade de, às vezes, incluir textos que pertençam a terceiros (o que contraria frontalmente a proposta original deste blog. Fazer o quê? Farei isso quando achá-los tão bons e oportunos, que se torne premente sua divulgação ante meus próprios dogmas). Cometerei esta indiscrição alegremente, descaradamente e sem dó, disseminando suas idéias e inteligência. Vou logo pedindo licença e perdão aos autores.

Assim, sem encontrar mais oposição (minha própria), que justique o contrário, nasce o Charranspa (que não significa nada além de ter sido um dos meus apelidos de infância).

Tomo este meu velho pseudônimo como tema e batizo este espaço.

Está feito.

Albarus Andreos

Junho de 2007.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O Dilema do Menino

Albarus Andreos
em setembro de 2007.

O menino chegou correndo feito bicho arisco, tropeçou e lá se foi o sorvete. “Porcaria!”, disse para si. Com a colherinha foi juntando a macinha cor-de-rosa. Olhou pros lados, ninguém via. Tacou de novo no copinho o máximo que conseguiu. Olhou de lado, ressabiado. Mamãe conversava com Isaltina na cozinha. “Tudo tranqüilo!” O carpete não deixara vir todo o sorvete para a colher. O menino já estava com o coração pulsando alto na garganta. “Mamãe vai ficar brava!”.

— Raspa mais...— o menino voltou-se para ver quem lhe dava a sugestão esbaforida e viu Mr. Sbrugs, verdadeiramente preocupado com sua sorte. Era seu sapinho de tecido recheado de feijões. Há dias o perdera de vista e agora encontrava-o sob o sofá, como ele próprio havia deixado aliás, enfiado entre as molas e a madeira, onde grampos prendiam o curvim do estofado.

— Não vai adiantar. Fez caca! — disse Darth Vader, que chiava atrás de outra espiral de mola.

Os pelinhos sintéticos do carpete marrom apareciam misturados ao restolho do melado, na colher. Não dava para reaver mais! Não dava para tirar direito. O boca desceu então rapidamente para a mancha grudenta.

— Boa idéia! — disse o Power Ranger Azul que, sem uma perninha, estava oculto em outro esconderijo do móvel (só Mr. Sbrugs lhe pertencia de verdade. Os outros eram herdados de seu irmão mais velho, que já não brincava com eles. Atinha-se agora somente ao Play 3, que ganhara de Natal).

Não era muito bom chupar o sorvete direto do carpete, mas a língua percorria toda a nódoa opaca que já não era mais fria. Além do gosto artificial de morango, tinha o gosto do carpete. “Então este é o gosto do carpete? Então as coisas tem gosto?” Não era uma gosto bom. “Deixa para lá...”. Tentou chupar mais forte e fez aquele barulho do ar entrando todo de uma vez, por uma frestinha. “Foi um barulho alto! Como pode ser tão alto?” A reflexão do menino não durou muito.

— Agora você está ferrado, garoto! — falou de novo o agourento Anakin Skywalker, com voz metálica, sob sua máscara negra, refletindo todo o pessimismo do “lado escuro da Força”.

Ouviu os passos da mãe que já estava achando o silêncio um prenúncio de arte. “Mamãe era esperta!” O coraçãozinho acelerado era de pânico e levou a que perdesse um pouco da noção de equilíbrio. A cabeçona do menino ainda era demasiado grande para o corpinho nanico. Desproporção que não se devia a defeito, mas típica da tenra idade.

Ajoelhado como estava, o que recuperara do sorvete estava numa mãozinha, dentro do cone de massa insípido e já mordiscado; a colherzinha na outra. A mãe vinha! Numa manobra descuidada tentou abaixar o tronco rapidamente para chupar mais do sorvete e livrar-se o melhor possível das provas do incidente. A boca foi de encontro ao que ainda havia de doce no chão. “Rápido demais!” O choque dos dentes foi o primeiro ruído, depois que o rosto assumira uma expressão de que algo havia de errado. Esquecera das mãos para apoiar? Tinha esquecido que assim não havia equilíbrio, menino?

Voou um caquinho de dente longe e o sangue jorrou da gengiva machucada. O choro veio depois do baque, exatamente quando mamãe já contornava a curva entre a parede e o piano, adentrando a sala: “Ai, meu Deus! Coitadinho...”

E foi assim que o menino, de pequeno, já descobriu que havia maneiras de se mudar o curso da história, mesmo aquelas que revelavam um futuro sombrio e sem esperanças como o que prenuncia uma – suposta – bronca materna. Para isso valera-se de uma artimanha que tinha sua origem diretamente relacionada ao apreço que ela tinha por seu caçulinha. Um apreço que não permitira que ela visse direito o todo da situação e, sem se ater a pormenores, logo supusesse que nada havia para supor além do que via por si e só.

Por alguma razão o menino sempre achou que perpetrara um engodo. Não o havia planejado, mas lhe livrara a cara. A confusão, de exclusiva responsabilidade da mãe, não lhe valia de pretexto pelo descuido de ter feito o que não devia, pois: “Afinal a mamãe não vivia dizendo que não devia correr dentro de casa?” Talvez não fosse realmente sofrer uma represália, passou a pensar, mas havia levado vantagem na história, e isso tinha servido de alívio.

Ganhou um sorvete novo o menino, além dos carinhos de sua mamãe e o sinal permanente que levou para a vida adulta: sorriso simpático, de menino arteiro, devido ao dente quebradinho.

Rendera-se ao “lado negro da Força”, sem dúvida!

2 comentários:

Bruno Cobbi disse...

Quando a mãe apanhou o garoto no colo, quase pude ouvir o Darth Vader chiando lá embaixo:

—"Luke, eu sou seu pai!" :D

Adorei a personificação dos brinquedos.

Camila Fernandes disse...

Mas que mocinho chantagista!
Curti muito o conto. Tirar os significados mais profundos das situações mais corriqueiras é privilégio das pessoas com imaginação. E infelizmente não vemos muitas todo dia. Parabéns!
E obrigada pelas passagens ao meu blog. Só acho uma pena o seu não ser atualizado há tanto tempo. :-)
Beijão.