Albarus Andreos
Março de 2007.
Março de 2007.
Escrevo o que me ocorreu há muito tempo. Tinha o quê? Nove ou dez anos. Brincava perto dos trilhos como mamãe sempre dizia para não fazer. “Prometa que não vai lá, perto dos trilhos brincar” Ela dizia. E eu nada.
Um dia aquele homem veio. Conhecia-o de ouvir o nome. Seu Sérgio. Claudicava pelas pedrinhas. Senti o cheio de cachaça de longe. Então, não sei como, prendeu o pé nos dormentes, bem na linha que passava à minha frente. Fiquei ali olhando em silêncio o homem praguejar, se desequilibrar, puxar o pé. Puxa de lá e de cá. De alguma forma estava preso nos trilhos.
Ele olhou pra mim. Puxou. Gesticulou. Xingou. Olhou de novo. Uma, duas vezes. Seus olhos vermelhos de pinga. Chocalhou de novo a perna. A calça escura e larga demais. Tentou tirar o pé e deixar a botina presa nos trilhos. Nada. Sacou um relógio dourado do bolso. Olhou de novo pra mim. Parecia estar ficando nervoso. Seu queixo tremeu. “Você é o Anjo, não é? Sei que é”. Parei de brincar com as pedrinhas e fiquei duro. Ele começou a falar. Respirava forte.
Desde que casara com Neida só queria um pouco de paz. Viúvo que era, não imaginava que fosse ter tudo ao contrário.
Neida era viúva também. Cabeleireira com uma filha de dezesseis anos. Aos dezoito, a vagabunda fugiu. Ainda aos dezoito retornou. Grávida, de barriga de gêmeos.
As duas menininhas só tinham três quando ela sumiu de novo. “Nos deixou as gêmeas para cuidar”.
Seu Sérgio atirou no chão o maço de cigarros. “Diga lá a Nossa Senhora que se me livrar de ti, eu paro com o vício de fumar”. Olhou para mim, e eu duro.
Um ano depois a moça voltou. Trazia outra menina. No colo desta feita. “Não pude agüentar. Com todo o prejuízo que aquelas outras duazinhas já nos causavam?”. Tive a impressão de sentir os trilhos tremerem debaixo dele. Talvez um apito. Seu Sérgio parou de falar e retirou uma garrafinha do bolso de trás. Olhou de novo o relógio e, tremendo, espatifou o vidrinho no chão. “Diga lá. Peça à Virgem que me perdoe, e eu paro de beber”. Senti então um tremor leve. Um ruído que me fez olhar para o horizonte. O trem vinha.
“Mais uma para criar? Pois as pequenas já não chamavam Neida de mãe e essa aí de tia? Não podia agüentar. Disse que não cuidaria de mais uma. Neida disse que ia levá-la ao médico para esterilizar. Melhor que fosse embora e que levasse os trastezinhos junto. A menina chorava, mas ela não dava nem bola. Eu não pegava. Dizia: “Neida, não pega. Não pega senão acostuma”. A Neida não pegava. Não agüentava mais aquele choro. Melhor dar para alguém criar. Eu que não gastava nem um tostão com ela.”
Seu Sérgio então passou a mão no rosto. Apoiou-se nos joelhos ofegante. Abriu a carteira. O apito do trem fez com que eu me afastasse. Ele tremia muito e de dentro retirou um pedacinho de plástico azul, jogou no chão num gesto largo. Eu era muito novo para saber o que era uma camisinha, mas o velho disse. “Eu sempre respeitei a Neida, mas a carne é fraquinha, sabe como é... Mas olha! Nunca trouxe doença pra ela”, apontou para o saquinho. O velho parecia não entender que falava com um pequeno. “Peça à Virgem de Aparecida que me perdoe. Peça que ela perdoa. Não me leva!”. O trem aprumou ao longe. Ele vinha surgindo do São Cristóvão, como sempre. Ele passaria e iria para o Itaí das Moças, como sempre. Um apito forte soou, antes da árvore, como sempre.
Seu Sérgio recomeçou a puxar o pé, com urgência. Achei que choramingava enquanto dizia mais coisas sem sentido. Acho que pensava que ia morrer.
“Minha Nossa Senhora! Sou seu fiel devoto, santinha. Eu prometo... Se me poupar. Eu... nunca mais faço aquilo de novo. Não toco mais na moça. Ela tinha ido embora... Não devia. Eu me arrependo. Me perdoa!”
Mamãe me fez prometer que eu não ia mais brincar nas pedrinhas. O trem veio, como sempre. Sei Sérgio gritou. O trem passou, como sempre, na linha de lá. Não na de cá, onde ele estava... Como sempre!
Seu Sérgio se levantou. Tinha caído com o vento e seu pé tinha se soltado. Ele balbuciava, branco como cera. Depois de algum tempo limpou o rosto e ajeitou o cabelo oleoso. Olhou para mim, de boca aberta, com olhar de bicho triste. Num momento parecia que ia chorar, no outro parecia ter raiva. Mirando o chão parecia querer achar os cigarros ou o “plástico” azul. A ventania tinha levado tudo. Tinha desarrumado as roupas dele também. Os matinhos em redor se agitando ainda, como sempre.
Então virou a cara e se foi, tropeçando, quieto, humilhado. Suas calças largas estavam molhadas.
Ele tinha feito muitas promessas naquele dia e eu finalmente prometi à mamãe que não brincava mais nas pedrinhas do trem.
Um comentário:
Já fazia algum tempo que caçava na internet algum blog realmente bom. Como uma escritora e poetiza amadora, contos e crônicas são as minhas pupilas quando busco algo para ler. Seu blog foi um achado. Um diamante na pedra bruta. Contos de classe, com um estilo Veríssimo que nos conduz à paixão da leitura. Parabéns e sucesso.
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